Programa
neodesenvolvimentista dos dois últimos presidentes mudou a face do
país, mas chegou a encruzilhada: ou se aprofunda, ou estagnará
Por Felipe Amin Filomeno
Hoje
vivemos um impasse (com risco de esgotamento) na estratégia de
desenvolvimento nacional iniciada por Lula e continuada por Dilma. Neste
ensaio, faço uma análise do neodesenvolvimentismo brasileiro,
combinando minha perspectiva com críticas oferecidas pela intelligentsia que se expressa na nova mídia (Outras Palavras, Carta Capital, Carta Maior,
etc.). Sem deixar de reconhecer os avanços proporcionados pelo
neodesenvolvimentismo Lula-Dilmista, destaco como seus aspectos
problemáticos: (1) os benefícios extraordinários ao capital transnacional, (2) os benefícios extraordinários ao capital primário-exportador, (3) o “industrialismo subdesenvolvido”, (4) a dispersão e parcialidade das políticas públicas, (5) a marginalidade da desconcentração de riqueza na agenda política, e (6) a baixa sustentabilidade ambiental.
Nos
anos 1930, a Grande Depressão criou condições no Brasil (e em outros
países latino-americanos) para novas estratégias de desenvolvimento,
baseadas na industrialização por substituição de importações, na
expansão do mercado doméstico e na intervenção do Estado na economia. De
1930 até a meados da década de 1970, a economia no Brasil cresceu sob o
que ficou conhecido como “nacional-desenvolvimentismo”. Seus atores
principais foram o Estado, o capital transnacional (principalmente
estadunidense), a burguesia industrial e o proletariado urbano
crescente. Sob Vargas e Jango, o desenvolvimentismo brasileiro
contemplou uma agenda de transformação social mais ampla, incluindo a
expansão dos direitos trabalhistas e planos de distribuição de riqueza.
Sob JK e, principalmente, nos governo militares, o desenvolvimentismo
assumiu uma forma mais conservadora, em que a transformação da economia
não era acompanhada de desconcentração da riqueza e democratização do
poder político. Ao final dos anos 1970, o Brasil era um país
industrializado, mas sua população ainda não desfrutava padrões de vida
equivalentes aos dos países centrais. A nação estava sob uma ditadura e
tinha (como ainda tem) uma das mais altas concentrações de riqueza no
mundo. Eram os limites do desenvolvimentismo, os problemas que este não
foi capaz de solucionar.
Em
seguida, nas décadas de 1980 e 1990, houve um refluxo na posição do
Brasil e da América Latina no mundo. Relativamente aos países centrais e
a alguns países asiáticos, a região se subdesenvolveu. As políticas
neoliberais e reformas de mercado implementadas sob a égide das elites
financeiras, principalmente nos anos 1990, trouxeram estabilidade
monetária, mas sua performance na promoção do crescimento econômico e na
redução da desigualdade social foi ruim. Em decorrência, na passagem
para o século XXI, as nações latino-americanas – então sob regimes
democráticos – elegeram governantes ligados a partidos de esquerda com
programas anti-neoliberais. Nos países andinos, isto assumiu a forma de
“socialismo bolivariano”, enquanto em países como o Brasil, o Chile, o
Uruguai e a Argentina, formas mais ou menos radicais de
“desenvolvimentismo” reapareceram. Como elementos comuns, tais projetos
tem a ampliação das políticas sociais e de distribuição de renda, a
maior abertura do Estado aos movimentos populares, a maior assertividade
na política externa frente às grandes potências, e o estímulo ao
crescimento econômico. No Brasil, uma versão de “social democracia
globalizada” combinou crescimento econômico com inclusão social.
A crise
mundial inaugurada em 2007/8 intensificou esse movimento ao revelar os
problemas causados pela desregulamentação excessiva dos mercados
financeiros, a promiscuidade entre o Estado e as elites empresariais, e a
inviabilidade política e econômica da austeridade econômica como
solução única. Países como o Brasil, em posse de excedentes financeiros
(graças à acumulação de reservas internacionais), tiveram condições e
oportunidade para aplicar políticas anti-cíclicas, as quais implicaram
maior intervenção do Estado na economia. Com o agravamento do contexto
mundial (crise na Europa e desaceleração econômica na China), o governo
brasileiro – já sob a presidência de Dilma Rousseff – adotou uma série
de medidas tributárias, monetárias e cambiais para estimular a atividade
econômica no país e, principalmente, proteger a indústria no Brasil da
competição e recessão globais. A expansão do programa de renda mínima (Brasil Sem Miséria),
a promoção da competição no setor bancário (pelo Banco do Brasil e
Caixa Econômica) e a redução dos juros são parte importante e positiva
deste programa.
Porém,
assim como aconteceu com o nacional-desenvolvimentismo nos anos 1970, o
neodesenvolvimentismo brasileiro, em sua variante Lula-Dilmista, começa
a mostrar sinais de esgotamento, circunscrito que está em certas
configurações locais e globais de poder. Abaixo, discuto aqueles que
considero os principais problemas a serem atacados:
(1) Benefícios extraordinários ao capital transnacional:
Quando o BNDES sinalizou apoio a uma proposta de fusão entre o Pão de
Açúcar e o Carrefour, em meados de 2011, critiquei, em minha coluna no Outras Palavras
(01/08/2011), a tendência do Estado brasileiro de favorecer a
constituição e reprodução de oligopólios, especialmente quando isto
resulta em lucros extraordinários em detrimento do consumo das famílias
brasileiras. No mesmo mês, Vladimir Safatle, na Carta Capital
(25/08/2011), apontou a emergência de um “capitalismo monopolista de
Estado” no Brasil. Na mesma direção, Luís Nassif tem criticado o BNDES
por apoiar a oligopolização em indústrias consolidadas ao invés de
“estimular o mercado de capital ajudando a reduzir o risco de
investimentos em novas empresas” (Carta Capital,
09/07/2012). Anteriormente, Nassif já havia criticado o governo por
conceder auxílio “a empresas estrangeiras em dificuldades, à custa do
consumidor brasileiro”, tornando o Brasil um “hospital de multinacionais
cambaleantes” (Carta Capital, 21/11/2011).
Isto é
particularmente visível na indústria automobilística, conforme apontado
por Valter Pomar. Dominada pelo capital transnacional, é beneficiária de
reduções no IPI e de tarifas alfandegárias contra importações chinesas,
mas não reduz seus lucros (posto que os preços diminuem pouco,
especialmente se comparados aos praticados no México e na Argentina) e
ainda reluta em garantir empregos no país (veja o caso recente da GM).
Como mostrou Gabriel Bonis, em reportagem para a Carta Capital
(17/07/2012), “desde 2008 [o Estado] concedeu ao setor medidas para
renúncia fiscal de cerca de 11,3 bilhões de reais. As empresas parecem,
porém, ter aproveitado os incentivos para ajudar as matrizes em
dificuldades. [...] no mesmo período, [suas] remessas ao exterior
somaram 38,1 bilhões de reais [...]”. O neodesenvolvimentismo brasileiro
precisa ser mais seletivo; suas políticas precisam favorecer a geração e
retenção de excedente econômico em mãos brasileiras, principalmente as
dos trabalhadores e populações carentes.
(2) Benefícios extraordinários ao capital primário-exportador:
Na última década, países em desenvolvimento ricos em recursos naturais
passaram a desfrutar de oportunidade historicamente extraordinária: um
aumento no preço relativo das commodities primárias comparativamente a manufaturas industriais. Fenômeno conhecido como commodity boom,
tem sido impulsionado principalmente pela demanda chinesa por produtos
primários. No Brasil, soja e minério de ferro despontaram como
indústrias beneficiadas por esta conjuntura. O lado ruim disto é o risco
de uma resource curse
(literalmente, “a maldição dos recursos naturais”). Países que se
especializam na exportação de recursos naturais apreciados tendem a
ficar com câmbio sobrevalorizado (o que prejudica sua industrialização),
ficam vulneráveis a oscilações no mercado mundial, à concentração e à
má gestão de receitas extraordinárias de exportação. Ulteriormente, isto
poder causar instabilidade política. No Brasil, o capital
primário-exportador é beneficiário da Lei Kandir (que isenta produtos
primários e semi-elaborados de ICMS), é intensivo em capital (gerando,
por isso, poucos empregos), e tem fortes externalidades ambientais
negativas. Além disso, no caso da soja, por exemplo, a moagem e
exportação estão altamente concentradas nas mãos de empresas
transnacionais estrangeiras. Por isto, em artigo publicado no Outras Palavras (13/04/2011), defendi “estratégias intermediárias de regulação de mercados [de exportação de commodities]
[...para a...] garantia da socialização e da sustentabilidade dos
benefícios das riquezas naturais”. Há tempo, também o Professor Bresser
Pereira tem defendido medidas para evitar a resource curse, como a taxação de exportações primárias, que ajudaria a socializar as rendas extraordinárias destes setores.
(3) Industrialismo subdesenvolvido: No círculo de policy-makers
e analistas do desenvolvimento brasileiro é majoritária a preocupação
com a “desindustrialização” do Brasil. Embora esta seja uma preocupação
com razões legítimas (como a manutenção dos empregos gerados pela
indústria), ela precisa ser qualificada. Em artigo publicado na Carta Capital
(03/01/2012), critiquei a intenção do governo brasileiro de mudar “a
tributação da importação de produtos do vestuário, com a finalidade de
proteger a indústria têxtil nacional da competição estrangeira (chinesa,
especialmente)”. Medidas protecionistas são justificáveis para
indústrias infantes (especialmente as em fronteira tecnológica), que,
por seu grau incipiente de desenvolvimento, precisam ser protegidas da
competição estrangeira para prosperarem. Porém, a produção de
manufaturas leves (vestuário, calçados, brinquedos, móveis) não é
indústria de fronteira tecnológica, é indústria tradicional já difundida
para vários países em desenvolvimento, com competição acirrada e,
portanto, com rentabilidade reduzida.
Uma vez que países altamente populosos com renda per capita
consideravelmente mais baixa que a brasileira (China, Índia) tenham
ingressado como competidores globais nestes setores, sua rentabilidade,
no Brasil, nunca mais será o que foi até 1990. Pode-se reduzir ainda
mais os juros, desvalorizar o câmbio, reduzir os tributos e, ainda
assim, a concorrência chinesa, indiana, vietnamita será acirrada. O
empresário que produz têxteis, confecções, calçados simples, etc. não
pode esperar mais que sua empresa tenha a mesma rentabilidade que tinha
há vinte anos atrás. Proteger tais indústrias da concorrência
estrangeira sem estímulos à conversão do capital nelas aplicado para
setores mais intensivos em inovação e diferenciação é uma forma de
industrialização subdesenvolvida. O BNDES, por exemplo, poderia
desconcentrar sua carteira de investimentos, atualmente muito voltada a
grandes empresas (muitas de capital estrangeiro), para apoiar
empreendimentos em indústrias nascentes intensivas em conhecimento e,
portanto, mais arriscados do ponto de vista do empresário individual.
(4) Dispersão e parcialidade das políticas públicas: O neoliberalismo oferecia receitas simples para os problemas econômicos, fórmulas do tipo one size fits all
(“um mesmo tamanho serve para todos”): liberalize os mercados, reduza a
intervenção estatal, austeridade fiscal e monetária, e os problemas
serão resolvidos. O neodesenvolvimentismo é mais complexo e implica um
pragmatismo oposto à ortodoxia econômica. Num cenário de crise mundial,
as política públicas adquirem mais ainda um caráter de “experimentação”.
O problema, conforme afirmou Gilberto Maringoni na Carta Maior
(07/04/2012), é que políticas como a desoneração tributária e medidas
tópicas para desvalorizar o câmbio podem acabar sendo “enxugar gelo”,
sem tocarem em questões mais fundamentais como os juros altos ou a
oligopolização (sob liderança estrangeira) da economia. Ademais, quando
políticas são formuladas ad hoc e privilegiam setores específicos, seus níveis de transparência, democratização e sistematização caem.
(5) Marginalidade da desconcentração de riqueza na agenda política:
No último decênio, o Brasil e a América Latina vivenciaram uma redução
na desigualdade de renda. Uma das razões foi a expansão dos programas de
renda mínima (como o Bolsa Família) na região. Isto é feito
extraordinário, mas estes países ainda ostentam os índices mais cruéis
de desigualdade social no mundo. Ademais, a emergência de uma “nova
classe média” no Brasil precisa ser relativizada. Conforme mostrou
Márcio Pochman no livro Nova Classe Média?
(Boitempo, 2012), “O resgate da condição de pobreza e o aumento do
padrão de consumo [...] não tiram a maioria da população emergente da
classe trabalhadora. [...] é preciso a politização classista do fenômeno
para aprofundar a transformação da estrutura social, sem a qual a massa
popular em emergência ganha um caráter predominantemente mercadológico,
individualista e conformista [...]”. De maneira perspicaz, Vladimir
Safatle afirmou, na Carta Capital
e em outros veículos, que Lula percebeu que “era possível desconcentrar
renda e criar um processo de ascensão social sem acirrar de maneira
radical conflitos de classe. O tempo mostrou que ele não estava errado.
Mas o preço foi alto: imobilizou pautas de transformação social”.
De fato,
relativamente ao gasto do Estado com juros da dívida pública, o
orçamento do Bolsa Família é pequeno. Conforme apontei em artigo no Outras Palavras (27/06/2011), hoje, o Brasil Sem Miséria
esbarra em uma política de juros altos (ainda que em redução), num
regime tributário regressivo (que onera proporcionalmente mais as
classes baixas), e em cartéis que exploram o consumidor brasileiro. É
preciso solucionar esta contradição trazendo a desconcentração de
riqueza para o centro da agenda política, como prioridade inclusive em
relação ao crescimento econômico.
(6) Baixa sustentabilidade ambiental:
Delfim Netto, conforme citado por Luís Nassif, afirmou que a economia
no Brasil hoje não precisa crescer às taxas altas que caracterizaram as
três décadas anteriores à crise dos anos 1970 (e que vigoram hoje na
China e na Índia). Isso porque, naquela época, o crescimento
populacional era muito maior (como são maiores também as populações
daqueles países asiáticos). Vindo de um dos artífices do “milagre
econômico” brasileiro ocorrido sob o regime militar, esta observação é
importante e vai ao encontro da crítica que apresentei na Carta Capital
(04/12/2011) à obsessão com o crescimento econômico. Numa forma de
“keynesianismo vulgar”, ela coloca a desconcentração de riqueza (entre
classes e países) e a sustentabilidade ambiental em segundo plano.
No
pós-neoliberalismo latino-americano, a esquerda se dividiu em duas
matizes contraditórias. Segundo Immanuel Wallerstein, há uma esquerda do
Buen Vivir
e uma esquerda neodesenvolvimentista. A primeira, concentrada nos
Andes, defende uma sociedade alternativa e sustentável, baseada no
equilíbrio entre economia e natureza. A segunda, que predomina no
Brasil, tem o crescimento econômico como objetivo primordial. Mesmo nos
Andes, há conflitos intensos entre as duas vertentes (especialmente na
indústria extrativista). Ficar estimulando o investimento das empresas e
o consumo das famílias sem assegurar sua sustentabilidade ambiental e
distribuição justa de benefícios é dar um empurrão num carro
momentaneamente afogado sem questionar se esse veículo consome gasolina
demais ou porque nele há tanta gente sentada apertada no banco de trás e
só duas pessoas confortavelmente sentadas na frente. A crise é o
momento ideal para se fazer tais questionamentos.
Finalmente,
é preciso pensar em que atores políticos estarão mais propensos e serão
mais capazes para responder positivamente a tais desafios. Não é
difícil concluir que não se trata dos partidos conservadores (PSDB, DEM,
PMDB, PSD), pois são herdeiros da tradição neoliberal e históricos
instrumentos políticos do status quo.
O PT, por outro lado, precisaria reforçar seus laços com os movimentos
sociais (trabalhista, ambientalista, etc.), superando o
“presidencialismo de coalizão” (mencionado por Vladimir Safatle) e sua
total incorporação ao establishment brasileiro, os quais reduziriam o PT a mais uma força reprodutora do subdesenvolvimento nacional.
–
Felipe Amin Filomeno é Economista e Doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University. Mantém um blog.
OUTRASPALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário