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quinta-feira, 19 de abril de 2012

A queda de Berlin e o apogeu stalinista


 

Diogo Carvalho [1]
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"A Queda de Berlim, URSS 1949", foi feito sob encomenda para comemorar o aniversário de setenta anos de Stalin. Nele, através de uma história simples, dividida em três narrativas foram reunidas algumas das principais características do realismo socialista. Aliosha e Natalia, dois personagens, cumprem a função de representar os heróis positivos sem ambigüidades, imaturos quanto a sua concepção de mundo. Assim, como em outras narrativas baseadas no realismo socialista, os heróis amadurecem a partir da sua aproximação dos líderes soviéticos, neste caso, o próprio Stalin. Hitler e sua camarilha desempenham a função dos inimigos da URSS, os inimigos externos. E a história em torno de Stalin fornece ao filme o propósito dele existir, uma vez que o culto a personalidade era a razão pela qual o realismo socialista estava estruturado.
A linguagem direta, desprovida de complexidade verbal e imagética também foram alguns dos aspectos incorporados por Tchiaureli na produção de "A Queda de Berlim". Um dado técnico muito importante que merece ser citado é que o filme foi realizado a cores, graças ao confisco soviético de material para produção cinematográfica Agfacolor, produzido pela empresa alemã Agfa. Isso foi muito importante para indústria de cinema da URSS que aproveitou a tecnologia deste material e realizou engenharia reversa. O acúmulo tecnológico permitiu que os soviéticos construíssem seu próprio sistema de colorização poucos anos depois. Este não foi o único filme feito com materiais alemães. A segunda parte de "Ivã O Terrível", também foi feita a partir da tecnologia oriunda da Agfa. Apesar deste salto técnico, relativo à implementação das cores, os contornos estéticos do filme são conservadores quando se analisa a edição, os planos e as tomadas das cenas. Mesmo sendo um filme tradicional, A Queda de Berlim é eficiente na sua proposta de retratar a guerra e os inimigos fascistas através do ponto de vista de Stalin.
Sob esse propósito, o filme é impecável. A onipresença de Stalin não se constitui somente através de sua presença física, mas, sobretudo, pelo repertório de símbolos Stalinistas presentes em cada momento do filme. Como dizem Richard Taylor, Denise Youngblood, entre outros acadêmicos que estudam temas relativos ao cinema Stalinista, "A Queda de Berlim" é o apogeu estético de um modelo artístico, destinado principalmente a construir e propagar o culto a personalidade: "A apoteose do culto à Stalin." (TAYLOR, 2006, p.100).
Na maioria das cenas, os cenários foram ornamentados com fotos de Stalin ao fundo da ação. Isso é recorrente em todo o filme. Além dos ornamentos diretos como: fotos, esculturas, pinturas, faixas e outros apetrechos, os slogans stalinistas são citados muitas vezes durante a película. Tais slogans, assim como a composição imagética das cenas iniciais do filme possuem a intencionalidade de repassar a mensagem stalinista do progresso, no qual os cidadãos soviéticos estão inseridos nesta perspectiva de construção de uma sociedade literalmente feliz. "A vida se tornou melhor. A vida se tornou mais feliz" [2] (Stalin, 1935 apud Hellen Rappaport, 1999, p. 171). Estas palavras de Stalin, ditas pela primeira vez na conferência dos 300 Stakhanovistas em 1935, se tornaram parte de uma música de Alexander Alexandrov intitulada "A Vida se Tornou Melhor, URSS, 1936." Esta canção fez tanto sucesso entre o establishment soviético, que sua melodia foi usada como base para o hino da URSS instituído em 1941.
O clima de felicidade, evidentemente provido pela liderança de Stalin, impactou profundamente nas representações dos inimigos da URSS. Para não ofuscar Stalin, Hitler foi caricaturado como um alucinado, completamente fora de si. Suas posturas foram construídas diametralmente opostas. Até o gestual de ambos é antípoda, Stalin gesticula simetricamente como um robô e, Hitler o louco, se movimenta de uma forma completamente assimétrica. Os locais das cenas onde ambos contracenam também diferem muito, enquanto Hitler habita a chancelaria, um local bastante suntuoso, o escritório de Stalin é simples e possui um pé direito baixo.
Os outros nazistas do círculo íntimo foram fielmente representados. Até os menores trejeitos de Goebbels e Goering foram encenados. Goering foi interpretado pelo ator tcheco Jam Werich, cuja semelhança com Goering era espantosa. Estes atores, auxiliados por um belíssimo trabalho de maquiagem, deram forma aos personagens de maneira que o grau de verossimilhança estética entre os sujeitos históricos ali representados e os atores beirou a perfeição. Os atores que representaram os personagens do comando militar alemão tiveram bom desempenho. A reconstituição dos hábitos destes líderes fascistas também primou pelos detalhes. Alguns exemplos, apresentados no filme, foram os prazeres de Goering, um bon vivant, amante da arte roubada dos países ocupados, assim como das iguarias alcoólicas, expropriadas da França pela Alemanha. Inclusive, no final do filme, quando ele já estava fugindo, a sua maior preocupação era salvar seus quadros e jóias.
Os soldados nazistas foram estereotipados como fracos e fanáticos, porém, paradoxalmente, o esforço soviético é enaltecido pela ofensiva impiedosa que estes mesmos soldados alemães realizaram no início da guerra. Como Tchiaureli construiu o roteiro para enfatizar os confrontos, onde os soviéticos saíram-se vitoriosos, os soldados alemães não possuem um ar triunfante e destemido. Este fanatismo dos soldados, de certa forma, transferiu para Hitler as responsabilidades sobre a guerra e os crimes que são cometidos, em conflitos do gênero. Na maioria das cenas, eles eram mortos ou feridos, raramente seus nomes eram pronunciados, com a exceção dos seus líderes, tão destacados quanto os comandantes de guerra, soviéticos: "A Queda de Berlim é único entre os filmes de guerra soviéticos na quantidade de tempo, dada ao inimigo." (YOUNGBLOOD. 2007, p.100).
A atmosfera, caracterizada pelo desespero e loucura, que se abateu sobre Hitler e seus homens está contida na película. Um filme contemporâneo cujas cenas do esconderijo de Hitler possuem semelhança com a Queda de Berlim, URSS, 1949, foi A Queda: as últimas horas de Hitler, Alemanha, 2004, que também possui imagens de jovens soldados bebendo e cantando no bunker de Hitler, prestes a ser invadido pelo Exército Vermelho. Quando Hitler se deu por vencido, ele casou com Eva Braun, e Tchiauereli também explorou isso, além de enfatizar o quanto Hitler amava seu cão, seguramente um pastor alemão de nome Blondi. No filme, estas foram as únicas duas personagens com as quais Hitler demonstrou algum tipo de afeição. Hitler em "A Queda de Berlim" não é uma unanimidade entre seus generais e a população. As discordâncias entre suas posições e a dos militares, subordinados a ele, acontecem a todo instante. Quando ele mandou encher de água os túneis do metrô, isso ficou explícito no filme, com o discurso da secretária que, desde o início de sua atitude, havia suplicado para que não o fizesse. Desolada, ela passou a perambular pelas ruas destruídas de Berlim e encontrou seu filho morto. Muito revoltada, esta secretária pronunciou as seguintes palavras, endereçadas a Hitler: "Deus te amaldiçoe. Hitler, 'seu' demônio! Devolva-me minha Alemanha de volta! Devolva-me meus irmãos! Devolva-me meu Hans! Deus te amaldiçoe Hitler." (A Queda de Berlim, URSS, 1949).
Tchiaureli omitiu determinadas informações sobre a morte de Hitler. No filme, Hitler cometeu suicídio logo após o casamento, mas teria utilizado somente cianureto. Porém, pesquisas atuais, baseadas nos relatos da verdadeira secretária particular, Traudl Junge, indicam que Hiltler não só utilizou cápsulas de cianureto para se matar, mas também deu um tiro na sua própria cabeça, no exato momento em que mordeu a porção de veneno.
Os campos de concentração também foram monstrados no filme, mas sem nenhuma alusão ao extermínio dos judeus. As câmaras de gás, assim como outros instrumentos, destinados à realização da "solução final", também não são citados. Os campos só aparecem por que Natasha foi levada para um deles e obrigada a realizar trabalhos forçados, até quando os soviéticos bombardeiam o local. Não devemos esquecer que o número de pessoas mortas na guerra, que foram divulgados na vigência do stalinismo, são muito inferiores aos números tratados na atualidade, pela Academia. Esta evidência ajuda a explicar o motivo pelo qual Tchiaureli não abordou de maneira enfática a política de extermínio empreendida pelos nazistas nos territórios ocupados.
Em "A Queda de Berlim", a bestialização dos soldados alemães, que era uma característica da narrativa de outros filmes soviéticos do gênero e período, foi estendida ao alto comando Alemão. A responsabilidade sobre o conflito deixou de ser restrita às pessoas que estavam no front. Na narrativa do filme, os lideres alemães foram os responsáveis pela situação geopolítica completamente catastrófica em que a Alemanha se envolveu.
Outro dado, que chama atenção na narrativa fílmica em questão, se refere à representação do apoio internacional recebido por Hitler. Além dos chefes de Estado, citados diretamente no filme, o apoio do representante da Igreja Católica é um ataque direto do regime soviético ao Vaticano, que até os dias atuais não conseguiu explicar direito sua relação com o regime nazista alemão. Uma excelente obra que esmiúça as relações entre o papado da época e o regime de Hitler foi escrita por John Cornwell[3]. Cornwell argumenta que, após 1933, as relações entre Hitler e Eugenio Pacelli, que se tornaria o papa durante o período da guerra, se tornaram cordiais. Pacelli, cuja carreira tinha, em parte, sido feita na Alemanha, também pensava que uma Alemanha forte impediria o avanço bolchevique pela Europa.
Ainda no plano internacional, "A Queda de Berlim" reforçou o argumento, propagado pela historiografia soviética durante a guerra fria, de que as potências ocidentais não estavam empreendendo ações militares que pudessem debilitar a Alemanha e ajudar a desafogar o front oriental. O filme também ressalta que os interesses de Hitler eram os mesmos dos países capitalistas, associando-os ideologicamente. Isso ficou explícito nas diversas vezes que os alemães cogitaram fazer acordos de paz com os EUA e a Inglaterra. Ou seja, a guerra-fria, que já estava em plena atividade, definiu as representações soviéticas, referentes às expectativas internacionais do governo alemão. Em termos propagandísticos, este tipo de associação era importante para o establishment soviético.
Em 1949, o perigo real de deflagração de um conflito militar global não era mais com a Alemanha nazista que não existia mais, mas sim com o bloco de países ocidentais e capitalistas. Assim, os soviéticos foram se preparando para uma guerra entre os países do socialismo real e as nações capitalistas. Esta preparação envolveu a utilização de seu aparelho ideológico de Estado, que foi direcionado para estereotipar as potências ocidentais, no imaginário da população soviética.
Bibliografia:
Rappaport, H; Stalin, J. A Biographical Companion. Santa Barbara: Ed. ABC-CLIO Ltd., 1999.
CORNWELL, J. O Papa de Hitler: A História Secreta de Pio XII. Rio de Janeiro: Ed. IMAGO, 2000.
TAYLOR, R. Film Propaganda: Soviet Russia and Nazi Germany. New York: Ed. I. B. Tauris & Co LTD, 2006
YOUNGBLOOD, D. Russian war films: on the Cinema Front, 1914- 2005. Kansas: Ed. University press of Kansas, 2007

[1] Historiador formado na Universidade Federal da Bahia e Mestre em Cultura e Sociedade pela mesma instituição.
[2] Para mais informações ver: Rappaport, H; Stalin, J. A Biographical Companion. Santa Barbara: Ed. ABC-CLIO Ltd., 1999.
[3] CORNWELL, J. O Papa de Hitler: A História Secreta de Pio XII. Rio de Janeiro: Ed. IMAGO, 2000.


Fonte: Pravda.ru

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