Por
Miguel Urbano Rodrigues
No início
dos anos 30 do século passado, o escritor austríaco Stefan Zweig escreveu um
livro polémico, «Brasil, pais do futuro». Deixara a Europa enojado com a ascensão
do nazismo na Alemanha. Ao desembarcar no Rio e viajar pelo interior, a
paisagem humana e física que o envolveu produziu nele um efeito estranho. Não
imaginava que pudesse exigir uma sociedade como aquela no quadro tropical que o
fascinou.
No
Brasil em acelerado processo de miscigenação anteviu uma humanidade distante,
fraterna, sem guerras, na qual o racismo teria desaparecido.
Essa
visão romântica, retomada pelo historiador Sérgio Buarque da Holanda com o mito
do «homem cordial brasileiro», foi rapidamente desmentida. Em plena fase da
industrialização, uma cruel ditadura militar de duas décadas mergulhou o Brasil
numa atmosfera de violência. Ali, como em qualquer outro país, no homo sapiens o apelo da barbárie
coexistia com a capacidade de realizar prodigiosas conquistas civilizacionais.
A previsão
de Zweig foi desacreditada pelo andamento da História. Os crimes da ditadura
coincidiram com um aprofundamento da dominação imperialista e da desigualdade
social. O fosso entre a miséria e a riqueza ampliou-se além do imaginável. O Brasil
tornou-se um país de párias e milionários.
Em
1957, quando desembarquei em São Paulo, a cidade tinha 2,3 milhões de
habitantes e uma única favela; ao regressar a Portugal em 1974, após um exílio
de 17 anos, a área metropolitana da gigantesca megalopolis ultrapassara já os
10 milhões e um gigantesco cinturão de miséria alastrava pela periferia. Hoje
são 18 milhões.
Finda
a ditadura, ao revisitar São Paulo em 88 ,não foi fácil ambientar-me. O
conflito entre a modernidade e o arcaísmo ampliara-se extraordinariamente.
Recordei que Levy Strauss definira o Brasil como a terra da «decadência do inacabado»,
impressionado pelo ritmo das transformações capitalistas marcadas pela
dicotomia construçao-desconstruçao.O novo ali envelhece vertiginosamente sem
estar terminado.
A vida
ofereceu-me a possibilidade de voltar ao Brasil com muita frequência no último
quarto de século. Ali sinto-me brasileiro, ali deixei filhos e netos, na tradição
da diáspora portuguesa.
Foi
no Brasil, participando nas lutas do seu povo, que me descobri como revolucionário
e me tornei comunista, me transformei, na aprendizagem da breve aventura da vida,
no homem que sou.
O
distanciamento físico, a partir do 25 de Abril, não afectou o amor pela terra e
aqueles que a povoam.
Mas
a mutação da vida nas grandes cidades brasileiras, nas selvas, sertões e
cerrados do país é tão profunda e vertiginosa que em cada regresso sinto com
força o choque do novo, do inesperado.
Voltei
agora. A convicção de que não atravessarei mais o Atlântico terá contribuído
para que sensações, imagens e ideias entrassem em mim ora em desarrumada
invasão, ora reabrindo na memória alamedas que a poeira do tempo fechara. Joyce
e Proust foram meus companheiros em três semanas de um reencontro com amigos e
camaradas que se movem em cidades que, revisitadas, me tocam como seres vivos
em diálogos imaginários.
Uma ausência,
para mim longa, de quatro anos, imprimiu a estes dias brasileiros a marca de um
tempo de revelações, porque o contacto com o real tido por íntimo era recebido
e arquivado como novo.
Caminhando
por São Paulo, ao levar a minha companheira a bairros e lugares que eu não via
há décadas, senti-me muitas vezes numa cidade desconhecida. Aquilo era simultaneamente, repito, íntimo e novo.
MEGALÓPOLIS
ALUCINATÓRIA
Por
São Paulo circulam hoje 7 milhões de carros e camiões. A cada semana milhares
de veículos novos aparecem nas ruas saídos das fábricas das grandes transnacionais
do automóvel instaladas no país. O Brasil é actualmente o quinto produtor
mundial de carros, com três milhões de unidades por ano.
Os táxis
são caríssimos, os restaurantes também. O preço dos apartamentos de qualidade é
três a quatro vezes superior ao de Portugal.
Um
abismo separa na pirâmide salarial os de cima dos de baixo. O salário mínimo é inferior
ao português, mas os parlamentares e os professores universitários de topo-
dois exemplos - têm vencimentos muitíssimo superiores. Os banqueiros e gestores
das grandes empresas também ganham muito mais.
O tráfego
em São Paulo envolve a cidade numa atmosfera angustiante. O quotidiano é
marcado pela imprevisibilidade de engarrafamentos monstruosos. Em algumas
avenidas, os corredores reservados aos transportes públicos geraram esperanças ilusórias.
Os rodízios também não resolveram os problemas de um trânsito infernal até
porque muitas famílias têm três e quatro carros para fintar a proibição de
circular em determinados dias. A dificuldade para estacionar, inclusive nos
parques, é inimaginável para os estrangeiros, porque a dimensão do desafio
supera muito a das grandes cidades europeias e norte-americanas.
O gigantesco caos de São Paulo, diferente do
que modela o quotidiano das megalópolis africanas e asiáticas, assusta o
forasteiro. A sensação de quem chega é a de que aquilo não pode continuar como
está e que viver ali é um pesadelo.
Mas
os bairros ricos de São Paulo superam pela modernidade e luxo, no Jardim Europa,
no Jardim América, no Pacaembu, no Morumbi, o que no género conheço de Caracas,
do México, de Nova Iorque e Paris. Porque a grande burguesia paulista, ao invés
das europeias, gosta de exibir ostensivamente a sua prosperidade insolente, ao
lado da miséria degradante que a envolve.
Mas,
passados dias, o forasteiro repensa, medita nas contradições, hesita, tenta
compreender e principia a assimilar o lado invisível da vida. É tocado pelo
feitiço brasileiro.
Os
absurdos perturbam. Na grande cidade, nos espaços verdes, há mais aves do que
nas europeias. A violência, filha da desigualdade, indigna e intimida, mas as pessoas,
nas ruas, nas lojas, nos transportes, são amáveis, cordiais. O desconhecido, ao
contrário do habitual na Europa, surge, logo no primeiro contacto, com o perfil
de um amigo potencial.
Em
São Paulo como no Rio, a alegria de viver, mesmo nos bairros degradados, em favelas
imundas, paira na atmosfera, brota dos sorrisos, dos gestos. Por mais sombrias
que sejam as perspectivas do amanhã, o paulista, como o carioca, enxerga luz no
fundo do túnel, cultiva o humor, o futuro próximo é para ele marcado pela
esperança e não pelo medo.
O
debate de ideias é não apenas efervescente, mas criador. Isso acontece no Teatro,
no Cinema, na Pintura, na Arquitectura, na Literatura, nas Ciências Sociais.
CONTRADIÇÕES
No Rio, a cintura de praias, num cenário paradisíaco,
deslumbra, é uma festa para os sentidos.
Mas
à beira do Atlântico, quase subindo das areias, encastoadas em morros verdes,
crescem como cogumelos gigantescas favelas misérrimas que exibem o rosto de uma
desigualdade social afrontosa da condição humana.
Os media internacionais dedicaram milhares
de palavras à ocupação pelo exército e pela polícia militar de algumas das
favelas mais famosas para erradicar o crime organizado e o tráfico de droga. Houve
quem acreditasse que essas operações tinham assinalado o fim de uma era.
Engano. Muitos bandidos regressaram, o tráfico persiste com a cumplicidade dos
militares.
O
crime está enraizado no submundo das favelas, povoadas de gente boa, a dois
passos dos esplendores de Copacabana e da Tijuca.
O
governo de Dilma Roussef repete incansável, que a desigualdade social está a diminuir
rapidamente no Brasil. Mente. Na estratificação de classes as clivagens são
muito mais acentuadas do que na Europa. E aprofundaram-se nos últimos anos.
O
estamento superior da classe média toma como modelo os EUA. Na sede de modernidade,
na maneira de vestir, no estilo de vida, nos lazeres.
Na
juventude com acesso ao ensino superior a obtenção de um diploma confere status, mas a maioria da classe média alta
manifesta um interesse mínimo pela compreensão dos grandes problemas do país e da
humanidade. Julga-se culta, mas está distanciada da cultura nas suas múltiplas
vertentes.
Numa
ronda pela noite paulista impressionou-me na Vila Madalena a transformação da área
que eu conhecera há um quarto de século como bairro em que predominavam modestas
casas de uma pequena burguesia anémica.
Agora
exibe o rosto de um Soho brasileiro, um Greenwich Village paulista. Em bares,
cafés e restaurantes, em galerias de arte onde transparece o bom gosto, desde a
fachada à decoração, convive alegremente uma juventude para mim
desconhecida.
Certamente
é heterogénea. Mas, a avaliar pelo bairro e o que sobre ele li, o interesse da
brilhante Vila Madalena pela transformação humanizada da sociedade brasileira
será escasso, para não dizer nulo.
Não
era possível, com o ruído do ambiente, formar sequer uma ideia do rumo das conversas.
Porventura a crise de civilização que a humanidade enfrenta seria assunto em
algumas mesas?
Consciente
de que pertenço a outro mundo, senti que Marx, redivivo, se por ali passasse,
concluiria que o conceito de alienação, por ele definido, mantém plena
actualidade.
A
LUTA DO MST
Tive
a oportunidade retomar contacto com o Movimento dos Sem Terra.
Falei
durante horas, num convívio familiar, com João Pedro Stedile e outros
dirigentes do MST. Duas palestras sobre a conjuntura internacional, uma na
Escola Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo, outra em Santa Tereza, no
Rio de Janeiro, permitiram-me durante os debates avaliar a qualidade de quadros
de diferentes Estados que demonstraram um nível de informação elevado sobre a
crise global do capitalismo e disponibilidade para lutar contra o sistema de opressão
imperial
A consciência
de classe nos militantes do MST é uma exigência das duras condições em que o Movimento
luta pela Reforma Agrária. Sem ela não teria sobrevivido.
Mais
de quatro milhões de camponeses têm fome de terra num país onde o latifúndio é responsável
pela existência de dezenas de milhões de hectares de terras improdutivas.
Lula
comprometeu-se no programa da campanha que o levou à Presidência em 2002 a
levar adiante a Reforma Agrária. Mas logo esqueceu a promessa.
O latifúndio
mais insolente e desumano do mundo permanece no Brasil como ofensa aos excluídos
do campo. No Norte há empresas cujas fazendas têm a dimensão da Bélgica.
A destruição
da floresta amazónica, pulmão da humanidade, prossegue com a cumplicidade dos
governos do PT. No Estado de Randónia a mata virgem quase desapareceu,
devastada pelos plantadores de soja e os criadores de gado. No Mato Grosso, em
municípios com o de Barra do Graças – duas vezes maior do que Portugal - a situação
é similar. Há meio século, quando ali estive, era um paraíso verde; hoje a desertificação
avança em amplas áreas da bacia do Rio das Mortes e do Araguaia.
O
MST cresceu amparado pelas comunidades de base ideadas pela Teologia da
Libertaçao.
A
confiança que os seus líderes depositavam nos sentimentos cristãos de Lula era ilusória.
Em 2011,apenas 22.021 famílias obtiveram lotes em assentamentos, o que
representou 51% dos conquistados em 1995 no governo de Fernando Henrique Cardoso.
O recuo acentuou-se com a chegada de Dilma Roussef à Presidência (menos 61% do
que os lotes atribuídos em 2003, na época de Lula).
Diferentemente
de Fernando Henrique, Lula e Dilma não desencadearam a repressão contra o MST.
Mas ela prossegue através dos governos estaduais, de juízes e autarcas
corruptos, aliados aos terratenentes.
A
organização dos assentamentos assumiu facetas de epopeia nas vertentes social,
económica e politica. O MST criou um movimento de massas com bases sociais em
todo o país, instalou escolas, forma quadros, criou inclusive uma universidade
popular.
Mas
o avanço torrencial do agro-negócio, da agro-industria, estimulado pelos
governos do PT, paralisou - é a palavra - a Reforma Agrária. O número de
assentamentos caiu muito nos últimos anos. Sem ajuda oficial, hostilizado pelo
grande capital e pela maioria dos partidos do sistema, o MST bate-se com a tenacidade
dos gregos antigos cantados por Homero.
Uma
das suas frentes de batalha é agora a luta contra o Código Florestal, aprovado
pelo Congresso sob pressão dos grandes senhores do latifúndio. O MSP, como
milhoes de brasileiros, exige que a Presidente Dilma Roussef vete esse diploma
monstruoso que, a ser promulgado, reforçaria privilégios do latifúndio e
deixaria as portas abertas para a destruição do que resta da mata amazónica.
O
OUTRO BRASIL
Uma imagem
distorcida da política de Lula corre mundo.
Com
um estilo e um discurso diferentes, ele deu continuidade à política neoliberal de
Fernando Henrique. É uma inverdade - repito- que a desigualdade social tenha diminuído
durante os seus dois mandatos. Com as suas medidas assistencialistas reduziu a
pobreza e a miséria, o que lhe garantiu uma enorme popularidade entre os excluídos.
Mas o fosso entre os de cima e dos de baixo não diminuiu, é hoje mais profundo.
A estratégia neodesenvolvimentista de Lula e da sua sucessora, ao engavetar o
programa social-democrata, favoreceu o grande capital e as transnacionais.
Contou e conta com o apoio do imperialismo, não obstante alguns aspectos positivos
da politica exterior.
O prestígio de Lula entre aquilo a
que Marx chamou o lupemproletariado tem funcionado internamente como um anestésico.
Dificulta extraordinariamente a luta contra a exploração de que os trabalhadores
são vítimas. Lula foi um sindicalista corajoso que desafiou a ditadura,
contribuindo para lhe apressar o fim. No poder neutralizou a combatividade do
movimento sindical e passou a utilizá-lo como instrumento passivo da sua política.
O controlo da principal Central Sindical, a CUT, é hoje uma arma que o PT
utiliza bem, favorecido pelo baixo nível de consciência social da maioria dos trabalhadores,
sobretudo no Nordeste e no Norte.
No
novelo de contradições que é o Brasil neste início do século XXI as assimetrias
sociais são um obstáculo ao avanço da luta de massas. Existem condições
objectivas muito favoráveis para a condenação da política actual. Mas faltam as
subjectivas.
À
passividade dos excluídos soma-se a alienação da esmagadora maioria da pequena burguesia,
sobretudo dos estamentos preocupados apenas a com a sua ascensão social.
Neste
panorama confuso, os desafios enfrentados pelas forças revolucionários assumem
extrema complexidade.
No Brasil
surgiu uma intelligentsia brilhante. Das
suas grandes universidades – a de São Paulo e a Unicamp, de Campinas figuram na
lista das melhores do mundo – saíram nas últimas décadas sociólogos,
economistas, historiadores e cientistas políticos que pelo valor e criatividade
das suas obras conquistaram prestígio mundial.
No
campo específico da política, a diversidade de formações ideológicas
traduziu-se em discursos por vezes antagónicos e de assimilação difícil, o que,
semeando a confusão, sobretudo após o tsunami que implantou o capitalismo na Rússia,
não contribuiu para a mobilização das massas contra o sistema.
Comunista,
foi sobretudo no diálogo fraterno com camaradas do PCB no qual militei nos anos
da ditadura, que me esforcei para acompanhar o movimento da História e da vida
no Brasil contemporâneo, em vertiginoso, permanente, quase alucinante processo
de transformação.
A reflexão
sobre o que vi, ouvi, estudei nestas semanas reforçou paradoxalmente o meu
optimismo.
Aproveitei
um fim-de-semana para rever Paraty, uma cidade colonial, no litoral fluminense,
que não lembra qualquer outra por mim conhecida.
Ali
era embarcado para Lisboa o ouro que descia em tropas de muares das serranias
das Minas Gerais.
Caminhando
sobre lajes musgosas em ruelas belíssimas entre casarões do século XVIII, com o
pensamento navegando do passado ao presente e no sentido inverso, a meditação
sobre as pontes que ligam o tempo morto ao tempo vivo fez-me subir à memória o polémico
livro de Stefan Zweig. A Historia, creio, vai transformar em realidade a previsão
que lhe valeu uma chuva de críticas. Antevejo o Brasil como um país que anuncia
dramaticamente a humanidade futura.
Vila
Nova de Gaia, Abril de 2012
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