Carta do comandante
Ernesto Che Guevara a Armando Hart Dávalos, escrita em 4 de dezembro de 1965.
Armando Hart foi ministro da Educação (1960–1965) e ministro da Cultura
(1976–1997), atualmente é membro do Conselho de Estado da República de Cuba
Meu querido Secretário:
Felicito-te pela oportunidade que te deram de
ser Deus; tens 6 dias para isso. Antes de que termines e te sentes a descansar
(…), quero te expor algumas ideiazinhas sobre a cultura de nossa vanguarda e de
nosso povo em geral.
Neste longo período de férias meti o nariz na
filosofia, coisa que faz tempo pensava fazer. Encontrei-me com a primeira
dificuldade: em Cuba não há nada publicado, se excluímos os tijolos soviéticos
que têm o inconveniente de não te deixar pensar; já que o partido o fez por você
e você deve digerir. Como método, é o mais antimarxista, mas além disso costumam
ser muito ruins. A segunda, e não menos importante, foi meu desconhecimento da
linguagem filosófica (tenho lutado duramente com o professor Hegel e no primeiro
round me deu duas quedas). Por isso fiz um plano de estudo para mim que,
acredito, pode ser estudado e melhorado muito para constituir a base de uma
verdadeira escola de pensamento; já fizemos muito, mas algum dia teremos também
que pensar. O meu plano é de leituras, naturalmente, mas pode se adaptar a
publicações sérias da editora política.
Se você der uma olhada em suas publicações
poderá ver a profusão de autores soviéticos e franceses que tem.
Isso se deve à comodidade na obtenção de
traduções e ao seguidismo ideológico. Assim não se dá cultura marxista ao povo,
no máximo divulgação marxista, o que é necessário, se a divulgação é boa (não é
este o caso), mas insuficiente.
Meu plano é este:
I. Clássicos filosóficos
II. Grandes dialéticos e materialistas
III. Filósofos modernos
IV. Clássicos da Economia e precursores
V. Marx e o pensamento marxista
VI. Construção socialista
VII. Heterodoxos e Capitalistas
VIII. Polêmicas
Cada série tem independência com relação à outra
e poderia se desenvolver assim:
I. Tomam-se os clássicos conhecidos já
traduzidos ao espanhol, acrescentando-se um estudo preliminar sério de um
filósofo, marxista se for possível, e um amplo vocabulário explicativo.
Simultaneamente, se publica um dicionário de termos filosóficos e alguma
história da filosofia. Tal vez pudesse ser Dennyk e a de Hegel. A publicação
poderia seguir certa ordem cronológica seletiva, quer dizer, começar por um
livro ou dois dos maiores pensadores e desenvolver a série até concluí-la na
época moderna, retornando ao passado com outros filósofos menos importantes e
aumentando volumes dos mais representativos, etc.
II. Aqui se pode seguir o mesmo método geral,
fazendo compilações de alguns antigos (há tempo li um estudo em que estavam
Demócrito, Heráclito e Leucipo, feito na Argentina).
III. Aqui se publicariam os mais
representativos filósofos modernos, acompanhados de estudos sérios e minuciosos
de gente entendida (não precisa ser cubana) com a correspondente crítica quando
representem os pontos de vista idealistas.
V. Está se realizando já, mas sem nenhuma ordem
e faltam obras fundamentais de Marx. Aqui seria necessário publicar as obras
completas de Marx e Engels, Lenin, Stalin e outros grandes marxistas. Ninguém
leu nada de Rosa Luxemburgo, por exemplo, que cometeu erros em sua crítica de
Marx (tomo III) mas morreu assassinada, e o instinto do imperialismo é superior
ao nosso nestes aspectos. Faltam também pensadores marxistas que depois saíram
dos trilhos, como Kautsky e Hilferding que fizeram aportes e muitos marxistas
contemporâneos, não totalmente escolásticos.
VI. Construção socialista. Livros que tratem de
problemas concretos, não só dos atuais governantes, mas do passado, fazendo
pesquisas sérias sobre os aportes de filósofos e, sobretudo, economistas ou
estadistas.
VII. Aqui viriam os grandes revisionistas (se
quiserem podem pôr Kruschev), bem analisados, mais profundamente que nenhum
outro, e devia estar teu amigo Trotsky, que existiu e escreveu, ao que parece.
Ademais, grandes teóricos do capitalismo como Marshall, Keynes, Schumpeter, etc.
Também analisados a fundo com a explicação dos porquês.
VIII. Como seu nome o indica, este é o mais
polêmico, mas o pensamento marxista avançou assim. Proudhon escreveu Filosofia
da miséria e se sabe que existe pela Miséria da filosofia. Uma edição crítica
pode ajudar a compreender a época e o próprio desenvolvimento de Marx, que não
estava completo ainda. Estão Robertus e Dürhing nessa época e depois os
revisionistas e os grandes polemistas dos anos 20 na URSS, provavelmente os mais
importantes para nós.
Agora vejo que me escapou um, motivo pelo qual
mudou a ordem (estou escrevendo voando).
Seria o IV, Clássicos da economia e precursores,
onde estariam desde Adam Smith, os fisiocratas, etc.
É um trabalho gigantesco, mas Cuba o merece e
acredito que poderias tentar. Não te canso mais com este blá-blá-blá. Escrevi a
você porque meu conhecimento dos atuais responsáveis da orientação ideológica é
pobre e, talvez, não fosse prudente fazê-lo por outras considerações (não só a
do seguidismo, que também conta).
Bem, ilustre colega de lides filosóficas, te
desejo sucesso.
Espero que nos vejamos no sétimo dia. Um abraço
aos abraçáveis, me incluindo de passagem à tua cara e belicosa amizade.
Ernesto “Che” Guevara
04/12/1965
Fonte - A Hora do Povo
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