Fala-se do 'despertar das ruas' no Brasil como se o país estivesse enfim acordando de seu velho estigma de gigante adormecido. Como se, em espaço curto e estreito de pouco mais de uma década, uma batalha sem tréguas não tivesse sido travada na corrida contra o tempo perdido, a favor de um Estado Social que o povo brasileiro jamais conheceu realmente.
Elizabeth Carvalho*
Observado de longe, do ponto de vista de
quem há um ano vem convivendo de perto com a gradual dissolução da
utopia europeia e a mudança cada vez mais acelerada do equilíbrio de
poder no continente onde nasceram os Estados-Nações, o espanto com o
Brasil convulsionado de hoje sugere algumas reflexões.
Fala-se do “despertar das ruas” como se o país estivesse enfim acordando, depois de mais de uma década de sono profundo, de seu velho estigma de gigante adormecido. Como se, no espaço curto e estreito de pouco mais de uma década, uma batalha sem tréguas não tivesse sido travada na corrida contra o tempo perdido, a favor de um Estado Social que o povo brasileiro jamais conheceu realmente, enquanto que os povos da Europa vão dele sendo desprovidos a cada dia.
Fala-se no “despertar das ruas” como se Estado e sociedade no Brasil nestes últimos anos estivessem em campos opostos, e como se fosse possível apagar da história, no curto espaço de dez dias, o passo enorme de uma nação de 220 milhões de habitantes, campeã mundial da desigualdade social, em direção a uma democracia mais participativa. É com ele que se tenta forçar a porta de acesso aos salões amplos e restritos de uma elite proprietária da fartura e do cosmopolitismo, incapaz de vislumbrar um país num horizonte mais amplo de futuro, para além dos interesses estreitos de seu imediatismo político.
Há um curioso traço de união na geléia geral das redes sociais que turbinam as vozes das ruas e misturam esquerda e direita como se fossem irmãs siamesas, fundindo ideais libertários com oportunismos políticos rasteiros. Um certo orgulho nacionalista ingênuo sobressai do tsunami que cobriu o país de ponta a ponta, como se enfim a sociedade mostrasse a sua virulência às famílias contestatárias das economias mais avançadas, hoje mergulhadas na crise insolvente de suas dívidas.
Estamos finalmente integrados ao fenômeno da “Multidão”- múltipla, caótica, antipartidária, horizontal, desprovida de liderança e composta de inúmeras diferenças internas, incapazes de descobrir uma mesma identidade, tal como descritas nas reflexões anarquistas da obra de Antonio Negri e Michael Hardt, e que por uma década foram abraçadas por uma considerável parcela do movimento internacionalista que inaugurou o século XXI em luta aberta contra o “Império” do corporativismo global. E como nos acampamentos do Occupy Wall Street ou dos Indignados da Puerta de Sol em Madrid, vivemos sob a ameaça de nascer e morrer nos protestos das ruas, sem ideias consistentes sobre que rumo tomar.
Há muitas formas de interpretar o significado deste traço de união entre movimentos que inflam e murcham com extraordinária rapidez e que se interligam na wonderland virtual das comunicações instantâneas do Facebook, do Google e dos smartphones. Uma delas, de pouca visibilidade, estuda o fenômeno da força adquirida pela sociedade civil nos últimas décadas como parte de última grande construção ideológica do mundo contemporâneo – o capitalismo neoliberal.
Investigando a retomada nos últimos 30 anos do século XX de um conceito adormecido desde o final do século XIX, o cientista político e filósofo Jorge Luis Acanda distinguiu três cenários onde o termo “sociedade civil” foi usado como denominador comum nos processos de subversão e mudança operados no processo de reordenamento do poder mundial que se operou nesse período da história.
O primeiro se deu no confronto com o comunismo de Estado do Leste europeu, quando a sociedade civil protagonizou o desmonte de um império vinculado à burocracia comunista soviética. O conceito de “sociedade civil” nesse caso, passou a ser sinônimo de anticomunismo. No segundo, na América Latina, a “sociedade civil” encarnou a representação daquilo que se opunha às arbitrariedades das ditaduras militares no continente. A crise dos Estados e dos partidos tradicionais projetou novos laços associativos e estimulou a ação política através de uma série de novos movimentos populares, como um passo adiante na emancipação social.
O terceiro cenário é o do uso da “sociedade civil” na ofensiva neoconservadora dos países capitalistas avançados, na defesa do modelo de um Estado com reduzida intervenção na vida econômica e social, despojado de suas funções redistribucionistas e subjogado às leis do mercado. Nos anos 1990, uma vasta literatura foi produzida em nome de uma ‘sociedade civil autônoma” condicionada à privatização de suas organizações como condição de “fortalecimento da democracia”.
Os três cenários de que nos fala Acanda se confundem hoje na miríade das redes sociais que expressam o desconforto a que vivem submetidos milhões de cidadãos em todo o mundo. Na verdade, estamos todos - Norte e Sul, Leste e Oeste – inexoravelmente enredados numa mesma teia. Devemos ao neoliberalismo uma radical reestruturação produtiva que atingiu empregos, salários, direitos sociais e trabalhistas e provocou o desmonte da organização sindical; a ele devemos a “despolitização” da economia, o encolhimento e a descrença do papel do Estado e o estímulo à retomada da esfera da vida social organizada como suporte a atores economicamente independentes, na busca do máximo proveito do mercado.
Sofremos todos os resultados de uma mesma ofensiva, mas, enquanto brasileiros, permanecemos emergentes periféricos. Como a Turquia, que há décadas bate à porta da Europa sonhando em fazer parte de uma família que a rejeita como irmã bastarda, padecemos de um desequilíbrio econômico e social ancestral. Há mais pontos em comum entre os pequenos pavios dos barris que explodem nas ruas destes dois países - as árvores da Praça Taksim e os dez centavos de aumento do preço de ônibus em São Paulo - do que entre nós e os rebeldes de uma Europa em declínio.
Como nas obras faraônicas do Brasil da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, a Turquia imaginava acertar o passo com um futuro próspero e cosmopolita através de uma orgia financeira de megaprojetos de “modernização urbana”, que só fizeram aumentar o fosso entre os custos sobrevalorizados das obras e as necessidades reais dos cidadãos de suas cidades.
Mas o Brasil não é exatamente a Turquia, e a forma autoritária de lidar com a insatisfação popular do primeiro ministro Erdogan diferem bastante das escolhas da presidente Dilma Rousseff. Em três dias, Dilma apresentou à nação um pacto de quatro pontos capitais, que nada mais são do que projetos que o governo tenta há tempos fazer passar mas o Congresso Nacional não deixa. O mais importante é um plebiscito que pressione uma mudança constitucional para dar conta de uma ambicionada reforma política, sem a qual o Brasil não avança e corre o risco de se tornar ingovernável nos próximos anos. Uma reforma que a oposição conservadora finge agora querer, mas objetivamente não quer.
O posicionamento do governo é positivo, ainda que tardio. Por mais de uma década, a esquerda brasileira no poder do Brasil imaginou ser possível um projeto político sem vencedores e vencidos, apostando na equação “ricos cada vez mais ricos + pobres cada vez menos pobres.” Não foi capaz de perceber as consequências de um projeto de inclusão de 30 milhões de brasileiros à máquina perversa de um consumo selvagem.
É desconcertante o despudor ostensivo de propagandas como a do free-shop do aeroporto internacional do Rio de Janeiro, acenando para a “classe C” emergente que viaja com milhas acumuladas no cartão de crédito (o passaporte da inclusão) a compra de produtos supérfluos mediante o pagamento de dez parcelas “sem juros”. É espantoso o tamanho do endividamento das famílias brasileiras estimuladas a comprar automóveis para que se tornem prisioneiras de cidades cada vez mais intransitáveis. Crescemos de forma desgovernada, apoiados num modelo econômico antigo, vicioso e saturado.
Mudá-lo exige opções claras e difíceis. Enquanto o Brasil se incendiava, o mundo tomou consciência do gigantesco sistema de vigilância e controle anglo-saxão que nos espiona nos mínimos detalhes de nossa vida pública e privada. E, realisticamente, não temos a menor idéia da extensão dos “curtos circuitos” provocados na wonderland virtual que nos mantem interligados no “despertar geral das ruas” do mundo.
Há alguns anos, o sociólogo Boaventura de Souza Santos imaginou que nesse maravilhoso mundo das redes desenhávamos uma utopia crítica radicalmente democrática, contra uma utopia conservadora cujo caráter utópico residia na negação radical de alternativas à realidade. Mas a verdade é que não se tropeça em alternativas na esquina; elas não estão escondidas num cofre qualquer do mapa do tesouro das ruas percorridas pela Multidão, nem na ideia de que podemos nos mover com Passe Livre e gratuito pelos transportes coletivos do Brasil e do mundo. Alternativas dependem de uma nova, longa e trabalhosa elaboração ideológica capaz de dar conta da realidade complexa que vivemos. Com pés no chão.
*Elizabeth Carvalho é jornalista correspondente em Berlim.
Fonte: Carta Maior
Fala-se do “despertar das ruas” como se o país estivesse enfim acordando, depois de mais de uma década de sono profundo, de seu velho estigma de gigante adormecido. Como se, no espaço curto e estreito de pouco mais de uma década, uma batalha sem tréguas não tivesse sido travada na corrida contra o tempo perdido, a favor de um Estado Social que o povo brasileiro jamais conheceu realmente, enquanto que os povos da Europa vão dele sendo desprovidos a cada dia.
Fala-se no “despertar das ruas” como se Estado e sociedade no Brasil nestes últimos anos estivessem em campos opostos, e como se fosse possível apagar da história, no curto espaço de dez dias, o passo enorme de uma nação de 220 milhões de habitantes, campeã mundial da desigualdade social, em direção a uma democracia mais participativa. É com ele que se tenta forçar a porta de acesso aos salões amplos e restritos de uma elite proprietária da fartura e do cosmopolitismo, incapaz de vislumbrar um país num horizonte mais amplo de futuro, para além dos interesses estreitos de seu imediatismo político.
Há um curioso traço de união na geléia geral das redes sociais que turbinam as vozes das ruas e misturam esquerda e direita como se fossem irmãs siamesas, fundindo ideais libertários com oportunismos políticos rasteiros. Um certo orgulho nacionalista ingênuo sobressai do tsunami que cobriu o país de ponta a ponta, como se enfim a sociedade mostrasse a sua virulência às famílias contestatárias das economias mais avançadas, hoje mergulhadas na crise insolvente de suas dívidas.
Estamos finalmente integrados ao fenômeno da “Multidão”- múltipla, caótica, antipartidária, horizontal, desprovida de liderança e composta de inúmeras diferenças internas, incapazes de descobrir uma mesma identidade, tal como descritas nas reflexões anarquistas da obra de Antonio Negri e Michael Hardt, e que por uma década foram abraçadas por uma considerável parcela do movimento internacionalista que inaugurou o século XXI em luta aberta contra o “Império” do corporativismo global. E como nos acampamentos do Occupy Wall Street ou dos Indignados da Puerta de Sol em Madrid, vivemos sob a ameaça de nascer e morrer nos protestos das ruas, sem ideias consistentes sobre que rumo tomar.
Há muitas formas de interpretar o significado deste traço de união entre movimentos que inflam e murcham com extraordinária rapidez e que se interligam na wonderland virtual das comunicações instantâneas do Facebook, do Google e dos smartphones. Uma delas, de pouca visibilidade, estuda o fenômeno da força adquirida pela sociedade civil nos últimas décadas como parte de última grande construção ideológica do mundo contemporâneo – o capitalismo neoliberal.
Investigando a retomada nos últimos 30 anos do século XX de um conceito adormecido desde o final do século XIX, o cientista político e filósofo Jorge Luis Acanda distinguiu três cenários onde o termo “sociedade civil” foi usado como denominador comum nos processos de subversão e mudança operados no processo de reordenamento do poder mundial que se operou nesse período da história.
O primeiro se deu no confronto com o comunismo de Estado do Leste europeu, quando a sociedade civil protagonizou o desmonte de um império vinculado à burocracia comunista soviética. O conceito de “sociedade civil” nesse caso, passou a ser sinônimo de anticomunismo. No segundo, na América Latina, a “sociedade civil” encarnou a representação daquilo que se opunha às arbitrariedades das ditaduras militares no continente. A crise dos Estados e dos partidos tradicionais projetou novos laços associativos e estimulou a ação política através de uma série de novos movimentos populares, como um passo adiante na emancipação social.
O terceiro cenário é o do uso da “sociedade civil” na ofensiva neoconservadora dos países capitalistas avançados, na defesa do modelo de um Estado com reduzida intervenção na vida econômica e social, despojado de suas funções redistribucionistas e subjogado às leis do mercado. Nos anos 1990, uma vasta literatura foi produzida em nome de uma ‘sociedade civil autônoma” condicionada à privatização de suas organizações como condição de “fortalecimento da democracia”.
Os três cenários de que nos fala Acanda se confundem hoje na miríade das redes sociais que expressam o desconforto a que vivem submetidos milhões de cidadãos em todo o mundo. Na verdade, estamos todos - Norte e Sul, Leste e Oeste – inexoravelmente enredados numa mesma teia. Devemos ao neoliberalismo uma radical reestruturação produtiva que atingiu empregos, salários, direitos sociais e trabalhistas e provocou o desmonte da organização sindical; a ele devemos a “despolitização” da economia, o encolhimento e a descrença do papel do Estado e o estímulo à retomada da esfera da vida social organizada como suporte a atores economicamente independentes, na busca do máximo proveito do mercado.
Sofremos todos os resultados de uma mesma ofensiva, mas, enquanto brasileiros, permanecemos emergentes periféricos. Como a Turquia, que há décadas bate à porta da Europa sonhando em fazer parte de uma família que a rejeita como irmã bastarda, padecemos de um desequilíbrio econômico e social ancestral. Há mais pontos em comum entre os pequenos pavios dos barris que explodem nas ruas destes dois países - as árvores da Praça Taksim e os dez centavos de aumento do preço de ônibus em São Paulo - do que entre nós e os rebeldes de uma Europa em declínio.
Como nas obras faraônicas do Brasil da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, a Turquia imaginava acertar o passo com um futuro próspero e cosmopolita através de uma orgia financeira de megaprojetos de “modernização urbana”, que só fizeram aumentar o fosso entre os custos sobrevalorizados das obras e as necessidades reais dos cidadãos de suas cidades.
Mas o Brasil não é exatamente a Turquia, e a forma autoritária de lidar com a insatisfação popular do primeiro ministro Erdogan diferem bastante das escolhas da presidente Dilma Rousseff. Em três dias, Dilma apresentou à nação um pacto de quatro pontos capitais, que nada mais são do que projetos que o governo tenta há tempos fazer passar mas o Congresso Nacional não deixa. O mais importante é um plebiscito que pressione uma mudança constitucional para dar conta de uma ambicionada reforma política, sem a qual o Brasil não avança e corre o risco de se tornar ingovernável nos próximos anos. Uma reforma que a oposição conservadora finge agora querer, mas objetivamente não quer.
O posicionamento do governo é positivo, ainda que tardio. Por mais de uma década, a esquerda brasileira no poder do Brasil imaginou ser possível um projeto político sem vencedores e vencidos, apostando na equação “ricos cada vez mais ricos + pobres cada vez menos pobres.” Não foi capaz de perceber as consequências de um projeto de inclusão de 30 milhões de brasileiros à máquina perversa de um consumo selvagem.
É desconcertante o despudor ostensivo de propagandas como a do free-shop do aeroporto internacional do Rio de Janeiro, acenando para a “classe C” emergente que viaja com milhas acumuladas no cartão de crédito (o passaporte da inclusão) a compra de produtos supérfluos mediante o pagamento de dez parcelas “sem juros”. É espantoso o tamanho do endividamento das famílias brasileiras estimuladas a comprar automóveis para que se tornem prisioneiras de cidades cada vez mais intransitáveis. Crescemos de forma desgovernada, apoiados num modelo econômico antigo, vicioso e saturado.
Mudá-lo exige opções claras e difíceis. Enquanto o Brasil se incendiava, o mundo tomou consciência do gigantesco sistema de vigilância e controle anglo-saxão que nos espiona nos mínimos detalhes de nossa vida pública e privada. E, realisticamente, não temos a menor idéia da extensão dos “curtos circuitos” provocados na wonderland virtual que nos mantem interligados no “despertar geral das ruas” do mundo.
Há alguns anos, o sociólogo Boaventura de Souza Santos imaginou que nesse maravilhoso mundo das redes desenhávamos uma utopia crítica radicalmente democrática, contra uma utopia conservadora cujo caráter utópico residia na negação radical de alternativas à realidade. Mas a verdade é que não se tropeça em alternativas na esquina; elas não estão escondidas num cofre qualquer do mapa do tesouro das ruas percorridas pela Multidão, nem na ideia de que podemos nos mover com Passe Livre e gratuito pelos transportes coletivos do Brasil e do mundo. Alternativas dependem de uma nova, longa e trabalhosa elaboração ideológica capaz de dar conta da realidade complexa que vivemos. Com pés no chão.
*Elizabeth Carvalho é jornalista correspondente em Berlim.
Fonte: Carta Maior
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