por Mary W., da revista Wireshoes
"Geralmente,
em virtude do papel que assume a religião na vida das mulheres, a
menina, mais dominada pela mãe do que o irmão, sofre mais, igualmente,
as influências religiosas. Ora, nas religiões ocidentais, Deus Pai é um
homem, um ancião dotado de um atributo especificamente viril: uma
opulenta barba brancal. Para os cristãos, Cristo é mais concretamente
ainda um homem de carne e osso e de longa barba loura. Os anjos, segundo
os teólogos, não têm sexo, mas têm nomes masculinos e manifestam-se sob
a forma de belos jovens. Os emissários de Deus na terra: o papa, os
bispos de quem se beija o anel, o padre que diz a missa, o que prega,
aquele perante o qual se ajoelham no segredo do confessionário, são
homens. Para uma menina piedosa, as relações com o pai eterno são
análogas às que ela mantém com o pai terrestre; como se desenvolvem no
plano do imaginário, ela conhece até uma demissão mais total. A religião
católica, entre outras, exerce sobre ela a mais perturbadora das
influências.
A
Virgem acolhe de joelhos as palavras do anjo: “Sou a serva do Senhor”,
responde. Maria Madalena prostra-se aos pés de Cristo e os enxuga com
seus longos cabelos de mulher. As santas declaram de joelhos seu amor ao
Cristo radioso. De joelhos no odor do incenso, a criança abandona-se ao
olhar de Deus e dos anjos: um olhar de homem". (Beauvoir, Introdução ao volume II da Bíblia*, a outra)
Eu
tinha um colega, na outra faculdade em que eu dava aula, que era doutor
em biologia genética. Uma vez ele chegou puto porque na UNESP/Rio
Preto, onde ele fazia o doutorado tinha tido um seminário sobre Evolução
e um padre foi convidado para compor a mesa. O coordenador alegou
relativismo e respeito à diversidade. E o meu amigo contou como o padre
levou slides de fósseis que se pareciam com a Virgem Maria. Os
estudantes de pós-graduação em Biologia também ficaram a par da teoria
de que fósseis são uma maneira de Deus testar a fé. Aqueles que
acreditam (nos fósseis), não passam no teste.
Outro
dia fiquei sabendo, também, que a Mix Brasil convidou o pastor
Felicianopara debater no 21o Festival sobre Diversidade. Não faço ideia
de que fim teve isso. Mas o convite causou alguma polêmica, o que eu
acho bom. Cada vez acho melhor.
Acho
mesmo que o conceito antropológico de relatividade foi sendo
desfigurado ao longo das últimas décadas. Cada vez mais ele parece ser
usado para que os grupos conservadores recusem as mudanças com a
anuência dos libertários. Feliciano tem o direito de falar num evento
sobre diversidade. Um padre leva seu power point num congresso
científico. Você pode me falar que não há contrapartida. O padre não
abre a missa para darwinistas nem Feliciano deixa a diversidade invadir
seus cultos. Mas nem de longe é isso que me preocupa. Porque eu não
quero levar meu power point para a igreja. Pelo contrário, pretendo não
pisar nelas todas. Sei o suficiente sobre história do cristianismo para
considerar que ele não me representa e que nele não brotam as minhas
pautas. De acordo com trocentos historiadores, o fundamentalismo é
cristão. É nessa doutrina que ele aparece e se cria. Umberto Eco fala
sobre isso, Giddens fala sobre isso. Não é difícil ter essa informação.
Eu
não vou ficar repassando aqui a história da Igreja Católica
especificamente. Várias pessoas fizeram isso ao longo do dia. O meu
ponto aqui é bem outro. É como chegamos a isso. A Srta. Bia postou, no
FB, um clipe da música Igreja, dos Titãs. Cito um trecho da ~subversiva~
canção:
Eu não gosto do terço
Eu não gosto do berço
De Jesus de Belém.
Eu não gosto do papa
Eu não creio na graça
Do milagre de Deus
Eu
fiquei pensando nisso. Que eu fui adolescente na década de oitenta e
essas coisas eram simplesmente lançadas. A Vida de Brian não causava
debate nem tsc tsc doWilliam Bonner. E aí eu fico realmente pensando se
esse relativismo aplicado ao indivíduo e seus problemas não acabou nos
trazendo a um ponto em que nada de ~sagrado~ pode ser realmente
criticado. Parece haver um pânico em ser chamado de intolerante e uma
necessidade de mostrar respeito àquilo que nos agride. A máxima “toda
religião é boa, o importante é ter uma” ganha caráter de verdade
universal. No mundo do fragmento, as pessoas se utilizam das engrenagens
duramente forjadas pelos oprimidos (a fim de sobreviverem) para manter o
status quo inalterado. Sim, eu posso dizer e cantar que eu não gosto do
berço de Jesus. Sim, é possível isso. Mais. Faz parte de uma rebelião
secular. Enfrentar os símbolos da santa Igreja é uma forma de dizer não,
ela não detém a verdade. Não, eu não acredito nela. Sim, eu posso dar
de ombros pros ensinamentos que ela propõe.
Mas
eu fico triste demais quando alguém zomba da minha fé. Mas eu choro
quando alguém questiona os meus dogmas. É a senha do relativismo
individual para que todos nós recuemos. Eu não recuo. E não quero deixar
VOCÊ triste. Não sei como pode ser tão difícil perceber que a crítica
está direcionada para a instituição Igreja. Claro que eu já sei também
que vivemos o tempo da emoção e do afeto. E que a racionalidade, talvez
por suas próprias limitações, tenha sido abandonada na elaboração de
argumentos. A nebulosa afetual que nos fala Maffesoli. Acho que todos já
percebemos que estamos diante desse novo tempo. E que toda e qualquer
crítica é lida como uma desrespeito à pessoa. No episódio da santa, foi
dito que os 3 milhões de fiéis ali foram agredidos. Por dois militantes
nonsense de uma Marcha horizontal e livre.
O
que eu vejo é que nenhuma ação anticlerical é possível. Tudo que eu
fizer é uma agressão individual. Caso de polícia. Quebrei uma santa.
Nossa. Violei a liberdade religiosa e impedi o culto. O que me resta é
ver o Papa passar. Minha proposta (sim, eu tenho uma proposta, a loka
etc) é que enfrentemos. Vamos voltar a dizer que as religiões cristãs se
erguem sobre uma cultura do ódio. Que historicamente eles tem impedido
as pessoas de existirem. Impediram negros, índios, mulheres, gays,
muçulmanos. Que eles nunca abandonaram a guerra santa. Que ~respeitar~ o
discurso deles é legitimar o ódio. Que a Virgem Maria não é uma imagem
feminina. É uma das imagens mais machistas já criadas pela cultura
humana. Que não existem mulheres na Igreja deles. Elas lavam os pés e
puxam o saco de homens. Que Simone de Beauvoir já dissecou A Religiosa
(ou A Mística) no segundo volume de O Segundo Sexo. A liberdade
mistificada da mulher, promovida pelas religiões, bem como a aniquilação
da carne da mulher religiosa. Estranhamente, as feministas que apoiaram
os manifestantes também fazem ressalvas individualista. “Eu não faria
isso“, “eu respeito quem não respeita mas não faria“. Um espiral de
justificativa que para mim é o cerne da questão: ´para combater
criacionismo, cartilha bioética papal e que tais PRECISAMOS enfrentar as
religiões. Ué. Não teve outro jeito. Até chegarmos nessa sinuca
teórica. Se-eu-critico-não-respeito. É uma falsa sinuca. O relativismo é
um método de compreensão. Não é a aceitação de todas as práticas e
discursos. Podemos sair do armário. Podemos dizer que falta senso
crítico àqueles que sacralizam um homem segundos depois da fumaça
vaticana. O preço que estamos pagando por não enfrentar é alto demais.
Cada vez mais vemos pastores e padres invadindo o Estado. Cada vez mais
abaixamos a cabeça e dizemos “ó, mas eles tem o direito de estar“. Como
se não soubessemos o que eles fazem quando tem o Estado nas mãos. Ao
invés de ficarmos dizendo sem parar que não quebraríamos santa, está na
hora de dizer que cagamos e andamos se uma santa foi quebrada.
Para
terminar, conto uma história mil vezes por mim repetida. No meu
primeiro ano de docência, durante uma aula sobre dimensão simbólica,
falei de religião. E acabei falando de santos. E disse assim “até bem
pouco tempo atrás as pessoas acreditavam em santos“. A sala ficou em
silêncio. Um aluno levantou a mão. Disse que ainda acreditava. Outras
pessoas levantaram a mão para dizer o mesmo. Oh, captain, my captain ao
avesso. Essa é minha história docente. Mas eu soube, então. Que não
estava mais no Kansas e ouvi os portões da faculdade de sociologia se
fechando atrás de mim. Saí da ilha sem bóia. Eu já entendi isso. Mas,
nossa. Tô preparada pra visita de Papa não. E muito menos para uma
geração que se exime de enfrentar uma visita dessa.
*Pode queimar um exemplar, se você quiser :)
PS: no twitter, várias pessoas reclamaram. de como esse assunto é chato etc. não me enganam. carolas disfarçadas.
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