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quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (IX)




Friedrich Engels



 A FORMAÇÃO DO ESTADO ENTRE OS GERMANOS








De acordo com Tácito, os germanos eram um povo bastante numeroso. Por César, formamos uma
idéia aproximada da grandeza de população dos diferentes povos germanos: os usipéteros e os teucteros da
margem esquerda do Reno seriam 180 000, incluídas nesta cifra as mulheres e as crianças. Por conseguinte,
correspondiam a cerca de 100 000 indivíduos para cada povo, número muito mais elevado, por exemplo, que
o da totalidade dos iroqueses em seu apogeu, quando, contando embora menos de 20 000 pessoas, foram o
terror de toda a vasta região compreendida entre os Grandes Lagos e o Ohio ou Potomac. Se assinalássemos
em um mapa as regiões ocupadas pelos povos das margens do Reno, que só conhecemos melhor através de
relatos que nos chegaram, de então, veríamos que cada um desses povos ocupa no mapa, mais ou menos, a
superfície de um departamento prussiano, ou seja, uns 10 000 km2 (182 milhas geográficas quadradas). A
Germania Magna 2 dos romanos elevar-se-ia a 5 milhões de habitantes, população considerável para um
grupo de povos bárbaros, mas extremamente reduzida para as nossas atuais condições (10 habitantes por
km2, ou 550 por milha geográfica quadrada), e isto dando-lhe uma superfície de 500 000 km2 e tomando
para cada povo a média de 100 000 indivíduos, de que já falamos. É verdade que a cifra atribuída à
população da Germania Magna não inclui todos os germanos existentes naquela época. Sabemos que ao
longo dos montes Cárpatos, até a foz do Danúbio, viviam povos germanos de origem gótica - os bastarnos, os
peukinos e outros - e eram tão numerosos que Plínio os considera a quinta tribo principal germânica. 180
anos antes de nossa era, esses povos serviam já ao rei macedônio Perseu, como mercenários, e avançaram até
as cercanias de Adrianópolis, nos primeiros anos do império de Augusto. Suponhamos que fossem um
milhão - e assim teríamos, no princípio da era cristã, um total mínimo provável de 6 milhões de germanos.
Desde que fixou residência definitiva na Germânia, a população cresceu cada vez mais rapidamente;
provam-no os progressos industriais a que já nos referimos. Os objetos descobertos nos pântanos da Silésia
são do século III, a julgar pelas moedas romanas utilizadas nos mesmos. Naquele tempo, portanto, já existiam
nas margens do Báltico uma indústria metalúrgica e uma indústria têxtil desenvolvidas, já se comerciava
ativamente com o império romano e já existia entre os ricos um certo luxo, tudo isso indicando maior
densidade de população. Começa ainda, por aquela época, a ofensiva geral dos germanos em toda a linha do
Reno, na fronteira fortificada romana e no Danúbio, desde o Mar do Norte até o Mar Negro, prova direta do
constante aumento da população, que tendia a expandir-se territorialmente. A luta durou três séculos, .durante
os quais todas as tribos principais dos povos góticos (exceção feita aos godos escandinavos e aos burgundos)
avançaram até o sudeste, formando a ala esquerda da grande linha de ataque, no centro da qual os altoalemães
(herminões) conquistavam o alto Danúbio. E à direita, os istevões, agora chamados francos,
conquistavam. as demais terras ao longo do Reno. Aos ingevões coube a conquista da Britânia. Nos fins do
século V, o império romano, débil, exangue e impotente, estava aberto à invasão germânica.
Nos capítulos precedentes, estivemos junto ao berço da antiga civilização grega e romana; agora
estamos junto a seu sepulcro. A plaina niveladora do domínio mundial romano havia passado, através de
séculos, sobre toda a bacia do Mediterrâneo. Em todas as partes onde não houve a resistência do idioma
grego, as línguas nacionais foram cedendo lugar a um latim corrompido; desapareceram as diferenças de
nações, já não havia gauleses, iberos, lígures, nóricos - todos se tinham convertido em romanos. A
administração e o direito romanos tinham dissolvido em toda parte as antigas uniões gentílicas, juntamente
com os restos de independência local ou nacional. A cintilante cidadania romana, a todos concedida, não
oferecia compensação: não só não expressava qualquer nacionalidade como expressava até a falta de
nacionalidade. É certo que existiam por toda parte elementos de novas nações: os dialetos latinos das diversas
províncias se iam diferenciando cada vez mais, as fronteiras naturais que haviam determinado a existência,
como territórios independentes, da Itália, da Gália, da Espanha e da África ainda subsistiam e se faziam
sentir. Mas, em lugar algum existia a força necessária para formar nações novas com tais elementos; em lugar
algum existia vestígio de capacidade para se desenvolver, de energia para resistir, e isso sem falar
propriamente de forças criadoras. A enorme massa humana daquele vastíssimo território tinha como único
vínculo de coesão o Estado romano; e, com o tempo, este se havia tornado seu pior inimigo e seu mais cruel
opressor. As províncias tinham arruinado Roma; a própria Roma se tinha transformado em cidade de
província como as outras, privilegiada mas não mais soberana - já não era o centro do império universal, nem
sede dos imperadores e governadores, que residiam em Constantinopla, Treves e Milão. O Estado romano se
tinha tornado uma máquina imensa e complicada, destinada exclusivamente à exploração dos súditos;
impostos, prestações pessoais ao Estado e gravames de todas as espécies mergulhavam a massa do povo
numa pobreza cada vez mais aguda. As extorsões dos governadores, dos fiscais e dos soldados reforçavam a
opressão, tornando-a insuportável. Essa era a situação a que o Estado romano havia levado o mundo. No
interior, um direito baseado na manutenção da ordem; no exterior, baseado na proteção contra os bárbaros -
mas a ordem deles era pior que a pior desordem, e os bárbaros contra os quais os cidadãos estavam sendo
protegidos eram esperados como salvadores.
Não menos desesperadoras eram as condições sociais. Nos últimos tempos da república, o domínio
romano já estava reduzido a uma exploração sem escrúpulos das províncias conquistadas; o império, longe de
suprimi-la, formalizou-a em lei. Quanto mais o império ia decaindo, mais subiam os impostos e taxas e maior
era a desfaçatez com que os funcionários saqueavam e extorquiam. O comércio e a indústria nunca foram
ocupações dos romanos, dominadores de povos. Foi na usura que excederam a todos os que os antecederam,
como aos que vieram depois. O comércio que encontraram e que pôde conservar-se por algum tempo acabou
perecendo pela extorsão oficial. Se alguma coisa ficou de pé, foi na parte grega, oriental, do império, da qual
não falaremos no presente trabalho. O empobrecimento era geral; declínio do comércio, decadência dos
ofícios manuais e da arte, diminuição da população; decadência das cidades; retrocesso da agricultura a um
estágio mais atrasado - este foi o resultado final do domínio romano no mundo.
A agricultura, o ramo decisivo da produção na antigüidade, era-o então mais do que nunca. Os
imensos domínios (latifundia) que ocupavam, desde o fim da república, quase toda a superfície da Itália,
eram explorados de duas maneiras: ou como pastos, onde a população tinha sido substituída por gado ovino
ou vacum, cuja criação exigia apenas um pequeno número de escravos, ou em fazendas, onde massas de
escravos se dedicavam à horticultura em grande escala, em parte para prover de víveres os mercados das
cidades, em parte para satisfazer o afã de luxo dos proprietários. Os grandes pastos foram conservados e até
provavelmente ampliados, mas as fazendas e a horticultura se arruinaram por completo, em conseqüência do
empobrecimento de seus donos e da decadência das cidades. A exploração dos latifúndios baseada no
trabalho escravo já não era proveitosa, conquanto fosse, na época, a única forma viável de agricultura em
grande escala. O cultivo em pequenas fazendas voltou a ser adotado, como única forma compensadora. Uns
em seguida aos outros, os latifúndios foram divididos em lotes, que eram entregues a arrendatários
hereditários, dos quais se cobrava certa quantidade de dinheiro, ou a partiarii (parceiros), mais
administradores do que arrendatários, pois que recebiam por seu trabalho a sexta ou até a nona parte da
produção anual. De preferência, no entanto, esses lotes eram entregues a colonos que pagavam um aluguel
anual fixo. Tais colonos ficavam sujeitos à terra e podiam ser vendidos juntamente com os lotes; não eram
propriamente escravos, mas tampouco eram livres - não se podiam casar com mulheres livres, e as uniões
entre eles não eram tidas como matrimônios válidos e sim como um mero concubinato (contubernium), tal
como entre os escravos. Foram os precursores dos servos medievais.
Tinha passado o tempo da antiga escravidão. Nem no campo, na agricultura em grande escala, nem
nas manufaturas urbanas, ela dava qualquer proveito que valesse a pena; tinha desaparecido o mercado para
os seus produtos. A agricultura em fazendolas e a pequena indústria, a que se tinha reduzido a gigantesca
produção escravista dos tempos florescentes do império, já não tinha onde empregar numerosos escravos. Na
sociedade não encontravam mais lugar senão os escravos domésticos e de luxo dos ricos. Contudo, a
escravidão agonizante ainda era suficientemente real para fazer considerar todo trabalho produtivo próprio de
escravos e indigno de um romano livre - e todo mundo, na ocasião, era romano livre.
De um lado, portanto, vamos encontrar um crescente número de escravos supérfluos alforriados, carga
de que seus donos queriam se desfazer; de outro lado, o aumento dos colonos e dos homens livres
empobrecidos, análogos aos poor whites dos antigos Estados escravistas da América do Norte. O cristianismo
não teve absolutamente nada a ver com a extinção gradual da escravidão. Durante séculos, compartilhou da
escravidão no antigo império romano, e mais tarde nada fez para impedir o comércio de escravos por
cristãos, ou por germanos, ao norte, ou por venezianos, no Mediterrâneo, e nos últimos anos nada fez para
impedir o comércio de escravos negros. A escravidão não compensava, e por isso morreu; mas, ao morrer,
deixou atrás de si um espinho venenoso: o trabalho produtivo tornado ignóbil para os homens livres. O
mundo romano estava num beco-sem-saída: a escravidão era economicamente inviável e o trabalho dos
homens livres estava moralmente proscrito. A primeira não podia mais e o segundo não podia ainda ser a
forma básica da produção social. Só uma revolução radical podia solucionar o problema.
A situação não era melhor nas províncias. A maior parte das informações que temos é referente à
Gália; ali, junto aos colonos, existiam pequenos agricultores livres, que, para se resguardar das violências dos
funcionários, magistrados e usurários, punham-se amiúde sob a proteção, sob o patronato de um poderoso.
Esta precaução foi tomada não apenas por camponeses isolados, mas por comunidades inteiras, de tal sorte
que, no século IV, os imperadores tiveram que promulgar diversos decretos proibindo essa prática. Mas que
adiantava isso para os que buscavam proteção ? O patrão lhes impunha a condição de transferirem para ele a
propriedade das terras e, em compensação, lhes assegurava o usufruto vitalício das mesmas. A Santa Igreja
reproduziu essa trapaça nos séculos IX e X, para maior glória de Deus e para o aumento de seus gens
terrenos. É verdade que naquela época, por volta de 475, Salviano, bispo de Marselha, ainda se indignava
com semelhante furto e contava que a opressão dos funcionários romanos e dos grandes proprietários de
terras havia chegado a tal ponto que muitos "romanos" fugiram para regiões ocupadas pelos bárbaros, e nada
atemorizava mais esses fugitivos do que virem a cair novamente sob a autoridade de Roma. Que, naqueles
dias, muitos pais pobres vendiam seus filhos como escravos por causa da miséria, está provado por uma lei
proibindo essa prática.
Por terem livrado os romanos de seu próprio Estado, os germanos lhes tomaram dois terços das terras
e as repartiram entre si. A partilha se realizou conforme a ordem estabelecida na gens; e, como os
conquistadores eram relativamente poucos, ficaram indivisas enormes extensões, parte delas como
propriedade de todo o povo e parte como propriedade das diferentes tribos e gens. Dentro de cada gens, os
campos agricultáveis foram divididos em partes iguais e distribuídos, por sorteio, entre as casas (lares). Não
sabemos se depois foram feitas novas partilhas; de qualquer forma, esse costume logo se perdeu nas
províncias romanas, transformando-se as parcelas distribuídas em propriedade privada alienável, alodial
(alod). Os bosques e os pastos não foram divididos, ficaram para uso coletivo; tal medida e o modo de
cultivar a terra repartida eram regulados pelo antigo costume e de acordo com a vontade de toda a
coletividade. Quanto mais tempo a gens ficava estabelecida em seu campo, mais se confundiam germanos e
romanos, e mais o caráter familiar da associação cedia lugar ao caráter territorial. A gens desapareceu na
marca - mas nesta, no entanto, são freqüentemente encontrados vestígios do parentesco original de seus
membros. Dessa forma, a organização gentílica se foi insensivelmente transformando em organização
territorial, e assim ficou em condições de se adaptar ao Estado, pelo menos nos países onde se manteve a
marca (ao norte da França, na Inglaterra, Alemanha e Escandinávia). Apesar de tudo, persistiu o caráter
democrático original das organizações gentílicas, e com ele uma arma na mão dos oprimidos, a qual
atravessou, inclusive, o período da degeneração forçada da gens, e chegou até os tempos modernos.
A rápida desaparição do vínculo consangüíneo na gens foi devida ao fato de terem seus órgãos, na
tribo e no povo, degenerado em conseqüência da conquista. Sabemos que a dominação exercida sobre os
derrotados é incompatível com o regime da gens; e aqui a vemos em larga escala. Os povos germanos, donos
das províncias romanas, tinham que organizar suas conquistas; mas as massas romanas não podiam ser
absorvidas nas corporações gentílicas, nem podiam ser regidas pelo sistema dessas corporações. A testa dos
órgãos locais da administração romana, conservados no princípio em grande parte, era preciso colocar, em
substituição ao Estado romano, outro poder, que só poderia ser outro Estado. Os órgãos da gens tinham que
se transformar em órgãos do Estado, e com notável rapidez, por força das circunstâncias. E o representante
mais próprio do povo conquistador seria, seguramente, o chefe militar. A segurança interior e exterior do
território conquistado estava a exigir que se reforçasse o comando militar. Havia chegado a hora de
transformar esse comando em monarquia - e veio a transformação.
Vejamos o império dos francos. Nele, correspondeu aos povos sálios vitoriosos a posse absoluta não
só dos vastos domínios do Estado romano, mas, também, de todos os demais imensos territórios ainda não
divididos entre as grandes e pequenas comunidades regionais e as marcas, e, principalmente, de
extensíssimas superfícies cobertas de bosques. A primeira coisa que fez o rei franco, ao se transformar de
supremo comandante militar em verdadeiro soberano, foi converter essas propriedades do povo em domínios
reais, roubá-las ao povo e dá-las ou concedê-las em feudo às pessoas do seu séquito. Tal séquito, formado
primitivamente por sua guarda militar pessoal e pelos subcomandantes do exército, foi logo ampliado com a
inclusão de romanos (quer dizer, gauleses romanizados) que se tornaram rapidamente indispensáveis por sua
educação, conhecimentos de escrita, latim vulgar e literário, bem como por seu conhecimento das leis do
país, e, ainda, ampliado com a inclusão de escravos, servos e libertos, entre os quais o rei escolhia os seus
favoritos. A maior parte dessa gente, a princípio, foram dados lotes de terra do povo; mais tarde, os lotes lhes
foram cedidos, sob a forma de benefícios, outorgados em geral - nos primeiros tempos - enquanto vivesse o
rei. E, dessa maneira, assentaram-se as bases de uma nobreza nova, às expensas do povo.
Mas isso não foi tudo. Em virtude de suas vastas dimensões, o novo Estado não podia ser governado
por processos da antiga constituição gentílica. O conselho dos chefes, quando já não tinha sido suprimido há
muito, não podia reunir-se em assembléia, e logo se viu substituído pelos que rodeavam assiduamente o rei.
A antiga assembléia do povo foi formalmente mantida, mas transformada, cada vez mais, em simples reunião
dos subcomandantes do exército e dos nobre recém-surgidos. Os ,camponeses livres donos de terra, que eram
a massa do povo franco, foram arruinados e reduzidos à penúria pelas constantes guerras civis e pelas guerras
de conquista - estas sobretudo durante o reino de Carlos Magno - tal como antes acontecera aos camponeses
romanos, em fins do período republicano. Originariamente, os camponeses formaram todo o exército; depois
da conquista das terras francas, constituíram seu núcleo. Nos começos do século IX, porém, tinham chegado
a uma tal situação de pobreza que, de cada cinco, apenas um deles dispunha dos apetrechos necessários para
ir à guerra. Em lugar do exército de camponeses livres convocados pelo rei, apareceu um exército integrado
pelos vassalos da nova nobreza. Entre estes havia servos, descendentes daqueles camponeses que, em tempos
idos, não haviam tido outro senhor que não o rei, e em tempos ainda mais distantes não haviam tido senhor
algum, nem mesmo um rei. Sob os sucessores de Carlos Magno, completou-se a ruína dos camponeses
francos, por força de guerras intestinas, em virtude da debilidade do poder real e das conseqüentes
usurpações dos nobres - aos quais se vieram a juntar os condes designados por Carlos Magno para as
comarcas, que desejavam tornar hereditárias as suas funções - e, finalmente, por causa das incursões dos
normandos. Cinqüenta anos depois da morte de Carlos Magno, o império aos francos, incapaz de resistência,
jazia aos pés dos normandos, como, quatro séculos antes, o império romano aos pés dos francos.
E não havia apenas a impotência externa, mas o mesmo acontecia com a ordem - ou melhor, desordem
- social interna. Os camponeses francos livres viram-se numa situação análoga à de seus predecessores, os
colonos romanos. Arruinados pelas guerras e pelos saques, viram-se obrigados a buscar a proteção da nova
nobreza ou da Igreja, já que o poder real era demasiado débil para protegê-los; mas essa proteção lhes
custava caro. Como tinha acontecido com os camponeses da Gália antes deles, tiveram que transferir a
propriedade de suas terras ao senhor feudal, seu patrão, de quem tornavam a recebê-las em arrendamento, sob
formas diversas e variáveis, mas sempre em troca de prestação de serviços e pagamento de tributos. Uma vez
reduzidos a esta forma de dependência, perderam pouco a pouco a liberdade individual e, ao cabo de algumas
gerações, a maior parte deles caíra na servidão. A rapidez com que desapareceu a camada dos camponeses
livres está mostrada no registro cadastral de Irminon, da Abadia de Saint-Germain-des-Près, naquele tempo
nos arredores e hoje dentro de Paris. Nos extensos campos da Abadia, abrangendo as terras próximas a ela,
havia 2 788 lares, ao tempo de Carlos Magno, compostos quase que exclusivamente de francos com
sobrenomes germânicos. Deles, 2 080 eram colonos, 35 lites, 220 escravos e apenas 8 eram camponeses
livres! O costume pelo qual o patrão fazia com que o camponês lhe transferisse a propriedade, deixando-o
unicamente com o usufruto vitalício da mesma, esse costume - denunciado como ímpio pelo bispo Salviano -
era agora universalmente praticado pela Igreja, no trato com os camponeses. As prestações pessoais, cada vez
mais generalizadas, modelavam-se em muitas de suas linhas gerais pela angariae romana (serviços
compulsórios prestados ao Estado), como nas prestações pessoais impostas aos membros das marcas
germânicas na construção de pontes e estradas, e em outros serviços de utilidade comum. Era como se,
depois de quatro séculos, a massa da população tivesse voltado ao ponto de partida.
Entretanto, isso provava somente duas coisas: em primeiro lugar, que a organização social e a
distribuição da propriedade no império romano agonizante correspondiam plenamente ao grau de produção
contemporânea na agricultura e na indústria, e por isso eram inevitáveis; em segundo lugar, que o estado da
produção não tivera avanços ou recuos de natureza essencial nos quatrocentos anos subseqüentes e, também
por isso, produzia necessariamente a mesma divisão da propriedade e as mesmas classes sociais. Nos últimos
séculos do império romano, a cidade havia perdido o seu domínio sobre o campo, e nos primeiros séculos da
dominação germana ainda não o tinha recuperado. O fato indica um baixo grau de desenvolvimento da
agricultura e da, indústria. Tais condições gerais produziam necessariamente poderosos latifundiários e
pequenos camponeses dependentes. As imensas experiências de Carlos Magno com suas famosas vilas
imperiais, desaparecidas quase sem deixar vestígios, provam como era impossível enxertar em semelhante
sociedade a economia latifundiária romana, á base do trabalho escravo, ou o novo cultivo em grande escala,
utilizando o trabalho servil. Essas experiências só foram prosseguidas nos conventos, e só foram proveitosas
para eles; mas os conventos eram corporações sociais de caráter anormal, baseadas no celibato. Podiam
realizar coisas excepcionais, mas, por isso mesmo, continuavam exceções.
Todavia, durante esses quatrocentos anos, alguns progressos tinham sido feitos. Se, ao fim dos quatro
séculos, encontramos quase as mesmas classes principais que no começo, é verdade que os homens que
constituíam essas classes haviam mudado. A antiga escravidão desaparecera, e o mesmo se dera com os
homens livres empobrecidos que menosprezavam o trabalho por considerá-lo ocupação de escravos: Entre o
colono romano e o novo servo, havia existido o camponês franco livre. A "lembrança inútil e luta inglória"
do romanismo decadente estavam mortas e enterradas. As classes sociais do século IX não se haviam
formado com a decadência de uma civilização agonizante e sim no trabalho de criação de uma civilização
nova. A nova geração, tanto senhores como servos, era uma geração de homens, comparada com seus
predecessores romanos. As relações entre os poderosos latifundiários e os servos camponeses dependentes -
relações que tinham sido para os romanos a forma da decadência irremediável do mundo antigo - foram, para
a nova geração, o ponto de partida para um novo desenvolvimento. E, além disso, por improdutivos que esses
quatrocentos anos pareçam ter sido, nem por isso deixaram de produzir um grande resultado: as
nacionalidades modernas, a refundição e a reorganização na Europa ocidental para a história iminente. Os
germanos tinham, com efeito, revivificado a Europa e por isso a dissolução dos Estados no período
germânico não levou ao jugo normando e sarraceno, e sim ao desenvolvimento dos benefícios e do patronato
(proteção de um poderoso) até o feudalismo, e a um incremento tão intenso da população que, dois séculos
depois, foi possível suportar sem maiores danos as rudes sangrias das cruzadas.
Que misterioso sortilégio era esse que permitiu aos germanos infundir uma força vital nova á Europa
agonizante ? Seria um poder milagroso e inato na raça germânica, como querem os nossos historiadores
chovinistas ? De modo algum. Os germanos, sobretudo naquela época, formavam uma tribo ariana muito
favorecida pela natureza e em pleno processo de vigoroso desenvolvimento. Mas não foram as qualidades
nacionais específicas que rejuvenesceram a Europa, e sim - simplesmente - sua barbárie e sua constituição
gentílica.
Sua capacidade e valentia pessoais, seu amor à liberdade e seu instinto democrático, que via nos
assuntos públicos um assunto de cada um, em uma palavra, todas as qualidades que os romanos haviam
pendido, as únicas com as quais seria possível formar, da lama do mundo romano, novos Estados e novas
nacionalidades, eram apenas os traços característicos dos bárbaros da fase superior da barbárie, os frutos da
sua constituição gentílica.
Se transformaram a forma antiga da monogamia, suavizaram a autoridade do homem na família e
deram à mulher uma situação mais elevada do que a que ela conhecera no mundo clássico - o que foi que os
tornou capazes de fazê-lo, senão sua condição de bárbaros, seus hábitos gentílicos, e a herança ainda viva dos
tempos do direito materno ?
Se foram capazes de preservar - pelo menos nos três países mais importantes (na Alemanha, na
Inglaterra e no norte da França) - uma parte do autêntico regime da gens, transplantando-o ao Estado feudal
sob a forma de marcas, dando aos camponeses oprimidos, mesmo durante a mais cruel servidão medieval,
uma coesão local e meios de resistência que não tiveram os escravos da antigüidade e não tem o proletariado
moderno - a que se deve isso senão à sua barbárie, ao sistema exclusivamente bárbaro de colonização por
gens ?
E, por último, se conseguiram desenvolver e difundir universalmente a forma de servidão mitigada
que haviam empregado em seu país natal, e que veio a substituir gradualmente a escravidão no império
romano - uma forma que, como Fourier foi o primeiro a ressaltar, oferece aos oprimidos os meios para uma
emancipação paulatina como classe (“fournit aux cultivateurs des moyens d'affranchissement collectif et
progressi “), superando assim em muito a escravidão, que permitia somente a alforria imediata do indivíduo,
sem transições (a antigüidade não apresenta qualquer exemplo de supressão da escravidão por uma revolução
vitoriosa), ao passo que os servos medievais iam conseguindo, aos poucos, sua emancipação como classe - a
que se deve isso senão à sua barbárie, graças à qual não tinham ainda chegado à escravidão completa, quer na
forma da antiga escravidão do trabalho, quer na forma da escravidão doméstica oriental?
Tudo que era força e vitalidade, naquilo que os germanos infundiram no mundo romano, vinha da
barbárie. De fato, só bárbaros poderiam rejuvenescer um mundo senil que padecia de uma civilização
moribunda. E a fase superior da barbárie, à qual tinham chegado e na qual estavam vivendo os germanos, era

precisamente a mais propícia à promoção deste processo. Isso explica tudo.

Próximo capitulo: BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO

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