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sexta-feira, 5 de julho de 2013

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Esrado (VII)





Friedrich Engels





 A GENS E O ESTADO EM ROMA






Segundo a lenda da fundação de Roma, a primeira fixação no local foi a de certo número de gens
latinas (cem, diz a lenda), reunidas em uma tribo. Logo se uniu a esta uma tribo sabina, de cem gens, ao que
também se diz, e por último uma tribo composta de elementos diversos, igualmente de cem gens. O conjunto
da narração revela, à primeira vista, que não havia nada ali espontaneamente formado, exceto a gens, que,
mesmo ela, em muitos casos, não passava de um ramo da velha gens-mãe, que tinha permanecido no antigo
território. As tribos levavam a marca de sua composição artificial, ainda que, em sua maioria, estivessem
formadas de elementos consangüíneos e consoante o modelo da antiga tribo de formação natural (e não
artificial); por certo, não fica excluída a possibilidade de que o núcleo de cada uma das três tribos acima
mencionadas pudesse ser uma autêntica tribo antiga. O escalão intermediário, a fratria, contava dez gens e
chamava-se cúria. Eram trinta as cúrias.
É fato reconhecido o de que a gens romana era uma instituição idêntica à gens grega; e, se a gens
grega era uma forma desenvolvida da unidade social cuja forma primitiva pôde ser observada entre os peles vermelhas
americanos, o mesmo pode ser dito da gens romana. Por isso, podemos ser mais sucintos em sua
análise.
Pelo menos nos primeiros tempos da cidade, a gens romana tinha a seguinte constituição:
1.Direito de herança recíproco entre os gentílicos; a propriedade permanecia na gens. Dada a vigência
do direito paterno, na gens romana, da mesma forma que na grega, os descendentes por linha feminina eram
excluídos na herança. Segundo a Lei das Doze Tábuas - o mais antigo monumento conhecido do direito
romano - em primeiro lugar herdavam os filhos, como herdeiros diretos que eram; não havendo filhos,
herdavam os agnados (parentes por linha masculina); e, na falta destes, os demais membros da gens. Em caso
algum, a propriedade saía da gens. Aqui observamos a gradual infiltração nos costumes gentílicos de novas
disposições legais, criadas pelo crescimento da riqueza e pela monogamia; o direito de herdar, a principio
igual para todos os membros de uma gens, restringiu-se, em um tempo bastante remoto, aos agnados, e
depois aos filhos e netos por linha masculina. Na Lei das Doze Tábuas essa ordem aparece invertida,
naturalmente.
2. Posse de um lugar coletivo para os mortos. A gens patrícia Cláudia, ao emigrar de Régilo para
Roma, recebeu, além de uma área de terra que lhe foi assinalada dentro mesmo da cidade, um local para o
sepultamento dos seus mortos. Até nos tempos de Augusto, a cabeça de Varo, falecido na floresta de
Teutoburgo, foi trazida a Roma e enterrada num túmulo gentílico (gentilitius tumulus), o que demonstra que
a sua gens (a Quintília) ainda tinha o seu jazigo particular.
3. Solenidades religiosas em comum. Chamavam-se sacra gentilitia e são bem conhecidas.
4. Obrigação de não casar dentro da gens. Em Roma, parece que jamais se chegou a defini-Ia em lei
escrita, mas era estabelecida como costume. Dos inúmeros casais romanos cujos nomes chegaram aos nossos
dias, não é conhecido um único caso em que o marido e a mulher tenham o mesmo nome gentílico. Outra
prova dessa regra é a do direito de herança, na forma com que era adotado: a mulher saía da gens ao casar-se,
perdia seus direitos agnáticos, nem ela nem os filhos que tivesse poderiam herdar de seu pai (dela) ou dos
irmãos deste. A gens não podia perder os gens dos seus membros que morressem, como aconteceria
fatalmente se outras leis de herança prevalecessem. E essa regra não teria sentido se a mulher não fosse
impedida de casar com um membro da sua Gens.
5. Posse da terra em comum. Existiu sempre nos tempos primitivos, desde que se repartiu o território
da tribo pela primeira vez. Entre as tribos latinas, encontramos o solo possuído em parte pela tribo, em parte
pela gens, em parte por casas, que na época dificilmente seriam de famílias individuais. Atribui-se a Rômulo
a primeira divisão de terra entre indivíduos, á razão de dois jugera para cada um (mais ou menos um hectare).
Mais tarde, contudo, vamos encontrar a terra ainda em mãos da gens, e isso sem falar nas terras do Estado,
em torno das quais gira toda a história interna da república.
6. Obrigação dos membros da gens de se ajudarem mutuamente e de se socorrerem. Na história escrita
vamos encontrar apenas vestígios disso: o Estado romano, desde sua aparição, manifestou-se bastante forte
para chamar a si o direito de proteção contra as ofensas. Quando Ápio Cláudio foi preso, sua gens inteira
vestiu luto, inclusive seus inimigos pessoais. E, ao tempo da segunda guerra púnica, as gens se associaram
para pagar ,o resgate de seus membros aprisionados, mas o senado proibiu-as de fazê-lo.
7. Direito de usar o nome gentílico. Manteve-se até a época dos imperadores. Aos próprios escravos
alforriados era concedida permissão para usar o nome gentílico de seus antigos senhores; conquanto não lhes
correspondessem, é claro, quaisquer direitos gentílicos.
8. Direito de adotar estranhos na gens. Era a adoção por uma família (como entre os índios
americanos), que trazia com ela a adoção pela gens.
9. Direito de eleger e depor o chefe, não mencionado em parte alguma. Como, porém, nos tempos
primitivos de Roma, todos os postos começando pelo de rei, eram preenchidos por eleição ou aclamação, e
até os sacerdotes das cúrias eram eleitos por elas, é razoável que admitamos o mesmo quanto aos chefes
(príncipes) das gens, ainda que pudesse ser regra eiegê-los de uma mesma família.
Tal era a constituição de uma gens romana. Excetuada a passagem ao direito paterno, já realizada, ela
é a imagem fiel do conjunto de direitos e deveres de uma gens iroquesa. Ainda aqui, "reconhece-se o
iroquês".
Eis um exemplo da confusão que ainda hoje impera nos trabalhos até dos nossos mais famosos
historiadores, relativamente à organização da gens romana: no que Mommsen escreveu sobre os nomes
próprios romanos da época republicana e dos. tempos de Augusto (Pesquisas Romanas, Berlim, 1864) podese
ler - "O nome gentílico é usado não só pelos membros masculinos da família, incluídos os adotados e os
clientes (e com a natural exceção dos escravos), mas, ainda, pelas mulheres... A tribo (Stamm: assim
Mommsen traduziu gens) é um conjunto.. . nascido da comunidade de origem, seja ela real, suposta ou
inventada, e mantido unido por-cerimônias religiosas, sepulturas e herança comuns. Todos os indivíduos
livres, as mulheres também, podem e devem integrá-la. O difícil é estabelecer o nome gentílico das mulheres
casadas. É certo que essa dificuldade não existia quando a mulher se casava com um homem da sua gens, e
está provado que durante muito tempo lhe foi bem mais difícil casar-se fora do que dentro da gens. O gentis
enuptio era ainda concedido como privilégio especial no século VI... Mas, quando tais matrimônios fora da
gens se realizavam, nos tempos primitivos, a mulher devia passar à tribo do marido. Nada está mais
assegurado do que o ingresso da mulher, com desvinculamento completo da sua própria comunidade, na
comunidade legal religiosa do marido, pelo antigo matrimônio religioso. Quem ignora que a mulher casada
perdia todos os direitos ativos e passivos de herança quanto à sua gens de origem, mas adquiria esses direitos
quanto à gens de seu marido e de seus filhos ? E, desde que seu marido a adota como a uma filha e a integra
em sua família, como poderia ficar fora da gens do mesmo ?" .
Mommsen assevera, portanto, que as mulheres romanas, a princípio, não podiam casar senão dentro
da gens a que pertenciam. Por conseguinte, para ele a gens romana era endógama e não exógama. Essa
opinião, que está em contradição com tudo que pudemos observar em outros povos, fundamenta-se
sobretudo, e talvez exclusivamente, num único trecho, aliás muito discutido, de Tito Lívio (livro XXXIX,
cap. 19), de acordo com o qual o Senado decidiu, no ano 568 de Roma (186 antes de nossa era), o seguinte:
uti Feceniae Hispallae datio, deminutio, gentis enuptio, tutoris optio item esset quasi ei vir testamento
dedisset; utique ei ingenuo nubere liceret, neu quid ei qui eam duxisset, ob id fraudi ignominaeve esset - quer
dizer: que Fecênia Hispala seria livre de dispor de seus gens, diminuí-los, de casar-se fora da gens, de
escolher um tutor para si como se o seu (defunto) marido lhe houvesse concedido esse direito por testamento;
assim como lhe seria lícito contrair núpcias com um homem livre sem que houvesse fraude nem ignomínia
para quem se casasse com ela.
É indubitável que a Fecênia, uma liberta, se dá aqui o direito de casar fora da gens. E não é menos
evidente, pelo que vem antes, que o marido tinha direito de permitir por testamento à sua mulher que se
casasse fora da gens após a sua morte. Mas, fora de qual gens ?
Se, como supõe Mommsen, a mulher devia casar-se no seio de sua gens, permanecia na mesma gens
depois do seu matrimônio. Mas, antes de tudo,. o que falta provar, precisamente, é essa pretendida endogamia
das gens. Em segundo lugar, se a mulher devia casar-se dentro de sua gens, naturalmente havia de acontecer
o mesmo ao homem, pois sem isso não poderia encontrar mulher. E, nesse caso, chegamos ao ponto em que o
marido podia transmitir testamentariamente à sua mulher um direito que ele mesmo não possuía para si; quer
dizer, eis-nos chegados a um absurdo jurídico. Assim também o entende Mommsen, e conjectura então que
"para o matrimônio fora da gens, necessitava-se, juridicamente, não só do consentimento da pessoa que podia
autorizá-lo, mas de todos os outros membros da gens". Em primeiro lugar, esta é uma suposição muito
audaciosa; em segundo lugar, a contradiz o próprio texto da passagem citada. Com efeito, o Senado dá esse
direito a Fecênia em lugar de seu marido; confere-lhe expressamente nem mais nem menos do que lhe teria
podido conferir o marido; mas o Senado dá aqui à mulher um direito absoluto, sem limitação alguma, de
forma que, fazendo ela uso desse direito, não pudesse sobrevir por isso o menor prejuízo a seu novo marido.
O Senado chega até a encarregar os cônsules e pretores, presentes e futuros, dos cuidados por que não seja
prejudicado o direito de Fecênia. Assim, pois, a hipótese de Mommsen parece em absoluto inaceitável.
Suponhamos agora que a mulher se casasse com um homem de outra gens, mas permanecesse ela
mesma em sua gens de origem. Nesse caso, segundo o trecho citado, seu marido teria tido o direito de
permitir à mulher o casamento fora da própria gens desta; quer dizer, teria tido o direito, de formular
disposições relativas a uma gens à qual ele não pertencia. Isso é tão absurdo que não vale a pena perder
tempo com o assunto.
Não resta, portanto, senão a seguinte hipótese: a mulher casava em primeiras núpcias com um homem
de outra gens, e em conseqüência desse casamento passava incondicionalmente à gens do marido como o
admite Mommsen em casos dessa espécie. Com isso, tudo se explica. A mulher, arrancada à sua gens de
origem pelo casamento e adotada na gens do marido, tem nesta uma situação muito particular. Torna-se
membro de uma gens à qual não está ligada por qualquer vínculo de consangüinidade; a própria maneira por
que ela foi adotada isenta-a da proibição de casar dentro da geras em que entrou exatamente pelo casamento.
E mais: admitida no grupo matrimonial da gens, em caso de morte de seu marido, herda alguma coisa dos
gens deste, isto é, dos gens de um membro da gens. Haverá algo mais natural do que a obrigação da viúva de
casar dentro da gens do seu falecido marido, para evitar que os gens do extinto se evadam ? E, se for preciso
abrir uma exceção, quem mais competente para autorizá-la do que o primeiro marido, legatário dos referidos
gens ? No momento em que cede parte de seus gens e permite à mulher que venha a levá-los, por ou em
conseqüência de um casamento ulterior, a uma gens estranha, o marido ainda é o dono dos gens, e não está
fazendo mais do que dispor, literalmente, de uma propriedade sua. No que tange à mulher mesma e à sua
situação relativamente à gens do marido, foi ele quem a introduziu nesta, e por um ato de sua livre vontade: o
matrimônio. Parece, pois, igualmente natural que seja ele a pessoa própria para autorizá-la a sair dessa gens
por meio de novas núpcias. A coisa parece simples e compreensível, desde que abandonemos a idéia
extravagante da endogamia da gens romana e a consideremos originariamente exógama, como fazia Morgan.
Mas ainda fica uma última hipótese - que também tem tido seus defensores, e bastante numerosos -
segundo a qual a passagem de Tito Lívio significa simplesmente que "as jovens alforriadas (libertae) não
podiam, sem autorização especial, et gente enubere (casar fora da Gens) ou realizar qualquer ato que, em
virtude da capitis deminutio miníma, ocasionasse a saída da liberta da união gentílica". (Lange, Antiguidades
Romanas, Berlim, 1856, tomo I, pág. 195, onde se faz referência a Huschke com respeito à nossa passagem
de Tito Livio). Se esta hipótese é correta, o trecho citado não tem nada a ver com as romanas livres, e então
há muito menos fundamento para falar de sua obrigação de casar dentro da gens.
A expressão enuptio gentis só é encontrada neste trecho e não se repete em toda a literatura romana. A
palavra enubere (casar fora) encontra-se mais três vezes, as três em Tito Lívio e sem referência à gens. A
idéia fantástica de que as romanas somente se pudessem casar dentro de suas gens deve sua existência a esta
passagem, exclusivamente. De modo algum é possível sustentá-la, porque, ou a frase de Tito Lívio aplica-se
apenas a restrições especiais concernentes às libertas – ou se refere a estas últimas, igualmente, e nesse caso
prova que, como regra geral, a mulher casava fora de sua gens e pelas núpcias passava à gens do marido.
Portanto, o próprio trecho discutido pronuncia-se contra Mommsen e a favor de Morgan.
Cerca de trezentos anos depois da fundação de Roma, os laços gentílicos ainda eram tão fortes que
uma gens patrícia, a dos Fábios, pôde empreender por sua própria conta, e com o consentimento do Senado,
uma expedição contra a cidade próxima de Veies. Conta-se que trezentos Fábios puseram-se em marcha, e
foram todos mortos em uma emboscada; salvou-se um único rapaz, que se tinha atrasado em caminho e foi
quem perpetuou a gens.
Conforme dissemos, dez gens formavam uma fratria, que aqui se chamava cúria e tinha atribuições
mais importantes que as de sua correspondente grega. Cada cúria tinha suas praticas religiosas, seus
santuários e sacerdotes; estes últimos, constituídos num organismo, formavam um dos colégios sacerdotais
romanos. De dez cúrias se compunha uma tribo, que originalmente, como as demais tribos latinas, deve ter
tido um chefe eleito - supremo comandante na guerra e grão-sacerdote. O conjunto das três tribos era o povo
romano, o populus romanus.
Desse modo, ninguém podia pertencer ao povo romano se não fosse membro de uma gens e,
consequentemente, de uma cúria e de uma tribo. A primeira constituição desse povo foi como se segue. A
gestão dos negócios públicos era da competência do Senado, composto dos chefes das trezentas gens,
conforme Niebbur foi o primeiro a compreender; por serem dos mais velhos em suas gens, estes chefes
chamavam-se patres, pais; o conjunto deles ficou sendo o Senado (de senex, velho - conselho dos anciãos). A
escolha habitual do chefe para cada gens no seio das mesmas famílias criou, também aqui, a primeira nobreza
gentílica. Essas famílias chamavam-se patrícías e pretendiam para elas a exclusividade no Senado e ocupação
dos demais cargos públicos. 0 fato de que, com o tempo, o povo se fosse submetendo a tais pretensões e
deixasse que elas se transformassem em direito real é, a seu modo, uma explicação da lenda que dizia ter
Rômulo, desde o início, concedido aos senadores e aos descendentes dos mesmos os privilégios do
patriciado. O Senado, tal como a bulê ateniense, tinha poderes para decidir em muitos assuntos e proceder á
discussão preliminar dos mais importantes, sobretudo das leis novas. Quem as votava, contudo, era a
assembléia do povo, chamada comitia curiata (comícios das cúrias). O povo se reunia, agrupado por cúrias, e
em cada cúria provavelmente por gens, cada cúria contando com um voto na decisão das questões. Os
comícios das cúrias aprovavam ou rejeitavam todas as leis, elegiam todos os altos funcionários, inclusive o
rex (o chamado rei), declaravam guerra (mas a paz era concluída pelo Senado) e, na qualidade de Supremo
Tribunal, julgavam as apelações nos casos de sentença de morte contra cidadão romano. Por fim, ao lado do
Senado e da assembléia do povo, ficava o rex, correspondendo exatamente ao basileu grego - e de modo
algum um monarca quase absoluto, como no-lo apresenta Mommsen. O rex era também chefe militar, grãosacerdote
e presidente de certos tribunais; não tinha funções civis ou poderes de qualquer espécie sobre a
vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos, desde que tais direitos não proviessem da sua condição de
chefe militar no exercício de funções disciplinadoras ou de presidente de tribunal no exercício de atribuições
judiciárias. As funções de rex não eram hereditárias e sim eletivas; as cúrias escolhiam o rex em comício,
provavelmente de acordo com uma proposta do seu predecessor, e empossavam-no solenemente em outra
reunião. Também podia ser deposto, como prova o que aconteceu a Tarquínio, o Soberbo. Tal como os
gregos da época heroica, os romanos no tempo dos chamados reis viviam, portanto, numa democracia militar
baseada nas gens, nas fratrias e nas tribos, e desenvolvida a partir delas. Embora as cúrias e as tribos possam
ter sido, em parte, formadas artificialmente, nem por isso deixavam de estar constituídas de acordo com o
modelo genuíno e natural da sociedade de que se originaram, modelo que ainda as envolvia por toda parte. É
certo, também, que a nobreza patrícia, surgida naturalmente, já ganhara terreno, e os reges tratavam de,
pouco a pouco, estender suas atribuições, mas isso não muda em nada o caráter inicial dessa constituição - e é
ele que nos importa.
Entretanto, a população da cidade de Roma e do território romano acrescentado por conquista foi
crescendo, em parte devido á imigração, em parte pela integração de habitantes das regiões submetidas, na
maioria de povos latinos. Todos estes novos súditos do Estado (deixando de lado a questão dos clientes)
viviam fora das antigas gens, cúrias e tribos e, por conseguinte, não faziam parte do populus romanus, do
povo romano propriamente dito. Eram, pessoal mente, livres; podiam possuir terras, estavam obrigados a
pagar impostos e sujeitos ao serviço militar. Não podiam, todavia, exercer qualquer função pública, ou tomar
parte nos comícios das cúrias, ou beneficiar-se da distribuição das terras conquistadas pelo Estado.
Constituíam a plebe, excluída de todos os direitos públicos. Pelo constante aumento do seu número, pela
própria instrução militar que recebiam e por seu armamento, acabaram por se converter em uma força
ameaçadora para o antigo populus, agora hermeticamente fechado para todo novo elemento vindo de fora. A
terra, além do mais, ao que parece estava dividida com certo equilíbrio e desde cedo - entre o populus e a
plebe, mas a riqueza comercial e industrial, ainda que pouco desenvolvida, pertencia à plebe, em sua maior
parte.
Em vista das trevas que envolvem a história legendária de Roma - trevas tornadas mais espessas pelos
ensaios nacionalistas e pragmáticos de interpretação e as narrações mais recentes devidas a escritores de
formação jurídica, os quais nos servem de fonte - é impossível dizer algo de concreto a respeito do fim, do
curso e das circunstâncias da revolução que acabou com a antiga constituição gentílica. O que se sabe, ao
certo, é que suas causas estão ligadas aos conflitos entre a plebe e o populus.
A nova constituição, atribuída ao rex Sérvio Túlio é apoiada em modelos gregos, principalmente na de
Solon, criou uma nova assembléia do povo, na qual eram admitidos ou não, indistintamente, os indivíduos do
populus e da plebe, segundo tivessem, ou não, feito o serviço militar. Ficou dividida em seis classes,
conforme a riqueza, toda a população masculina, sujeita ao serviço militar. Os gens mínimos das cinco
classes superiores eram: 100 000 ases para a primeira, 75 000 para a segunda, 50 000 para a terceira, 25 000
para a quarta e 11 000 para a quinta - cifras que, segundo Dureau de Ia Malle, correspondem respectivamente
a 14 000, 10 500, 7 000, 3 600 e 1 570 marcas. A sexta classe, a dos proletários, compunha-se dos mais
pobres, isentos do serviço militar e dos impostos. Essa nova assembléia popular dos comícios das centúrias
(comida centuriata) era integrada por cidadãos militarmente formados por companhias de cem homens, cada
uma das quais tinha um voto. A primeira classe dava 80 centúrias, a segunda 22, a terceira 20, a quarta 22, a
quinta 30 e a sexta, por mera formalidade, uma centúria. Além dessas, havia 18 centúrias formadas por
cavaleiros, isto é, pelos cidadãos mais ricos. No total, as centúrias eram 193. Para se obter maioria, eram
requeridos 97 votos; e, como os cavaleiros e a primeira classe juntos dispunham de 98 – tinham assegurada a
maioria -, quando estavam de acordo nem consultavam as outras classes e tornavam, sem elas, as resoluções
definitivas.
A esta nova assembléia passaram todos os direitos políticos da anterior, da assembléia das cúrias
(exceto alguns puramente nominais); como aconteceu em Atenas, as cúrias e as gens que as compunham
viram-se rebaixadas à condição de simples associações privadas e religiosas e, com essa forma, vegetaram
ainda por muito tempo - ao passo que a assembléia das cúrias não tardou em cair no completo esquecimento.
Para excluir também do Estado as três primitivas tribos gentílicas, foram criadas quatro tribos territoriais,
cada uma das quais residindo em um determinado distrito da cidade e tendo direitos políticos definidos.
Assim se destruiu, em Roma, antes da supressão do cargo de rex, a antiga ordem social fundamentada
nos vínculos de sangue. Uma nova constituição a substituiu, uma autêntica constituição de Estado, baseada
na divisão territorial e nas diferenças de riquezas. A força pública, aqui, era formada pelo conjunto dos
cidadãos sujeitos ao serviço militar - e não só se opunha aos escravos como, também, se opunha à classe dita
proletária, excluída do serviço militar e impedida de usar armas.
A nova constituição recebeu um impulso em seu desenvolvimento com a expulsão do último rex,
Tarquínio, o Soberbo, usurpador de poderes realmente imperiais, e com a substituição do rex por dois
comandantes militares (cônsules) dotados de iguais poderes (como entre os iroqueses). Sob a égide dessa
constituição, processa-se toda a história da república romana, com suas lutas entre patrícios e plebeus pelo
acesso aos empregos públicos, pela distribuição de terras do Estado, até a dissolução final da nobreza patrícia
na nova classe dos grandes proprietários de dinheiro e de terras. Estes absorveram aos poucos toda a
propriedade rural dos camponeses arruinados pelo serviço militar, passaram a cultivar, por meio de escravos,
os imensos latifúndios assim formados, acabaram por despovoar a Itália e, com isso, abriram caminho não
apenas para o império como para o domínio dos bárbaros germanos, que sucedeu ao império.

Próximo capitulo:  A Gens entre os Celtas e entre os Germanos 


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