Friedrich Engels
A GENS E O ESTADO EM ROMA
Segundo
a lenda da fundação de Roma, a primeira fixação no local foi a de certo número
de gens
latinas
(cem, diz a lenda), reunidas em uma tribo. Logo se uniu a esta uma tribo
sabina, de cem gens, ao que
também
se diz, e por último uma tribo composta de elementos diversos, igualmente de
cem gens. O conjunto
da
narração revela, à primeira vista, que não havia nada ali espontaneamente
formado, exceto a gens, que,
mesmo
ela, em muitos casos, não passava de um ramo da velha gens-mãe, que tinha
permanecido no antigo
território.
As tribos levavam a marca de sua composição artificial, ainda que, em sua
maioria, estivessem
formadas
de elementos consangüíneos e consoante o modelo da antiga tribo de formação
natural (e não
artificial);
por certo, não fica excluída a possibilidade de que o núcleo de cada uma das
três tribos acima
mencionadas
pudesse ser uma autêntica tribo antiga. O escalão intermediário, a fratria,
contava dez gens e
chamava-se
cúria. Eram trinta as cúrias.
É
fato reconhecido o de que a gens romana era uma instituição idêntica à gens
grega; e, se a gens
grega
era uma forma desenvolvida da unidade social cuja forma primitiva pôde ser
observada entre os peles vermelhas
americanos,
o mesmo pode ser dito da gens romana. Por isso, podemos ser mais sucintos em
sua
análise.
Pelo
menos nos primeiros tempos da cidade, a gens romana tinha a seguinte
constituição:
1.Direito
de herança recíproco entre os gentílicos; a propriedade permanecia na gens.
Dada a vigência
do
direito paterno, na gens romana, da mesma forma que na grega, os descendentes
por linha feminina eram
excluídos
na herança. Segundo a Lei das Doze Tábuas - o mais antigo monumento conhecido
do direito
romano
- em primeiro lugar herdavam os filhos, como herdeiros diretos que eram; não
havendo filhos,
herdavam
os agnados (parentes por linha masculina); e, na falta destes, os demais
membros da gens. Em caso
algum,
a propriedade saía da gens. Aqui observamos a gradual infiltração nos costumes
gentílicos de novas
disposições
legais, criadas pelo crescimento da riqueza e pela monogamia; o direito de
herdar, a principio
igual
para todos os membros de uma gens, restringiu-se, em um tempo bastante remoto,
aos agnados, e
depois
aos filhos e netos por linha masculina. Na Lei das Doze Tábuas essa ordem
aparece invertida,
naturalmente.
2.
Posse de um lugar coletivo para os mortos. A gens patrícia Cláudia, ao emigrar
de Régilo para
Roma,
recebeu, além de uma área de terra que lhe foi assinalada dentro mesmo da
cidade, um local para o
sepultamento
dos seus mortos. Até nos tempos de Augusto, a cabeça de Varo, falecido na
floresta de
Teutoburgo,
foi trazida a Roma e enterrada num túmulo gentílico (gentilitius tumulus), o
que demonstra que
a
sua gens (a Quintília) ainda tinha o seu jazigo particular.
3.
Solenidades religiosas em comum. Chamavam-se sacra gentilitia e são bem
conhecidas.
4.
Obrigação de não casar dentro da gens. Em Roma, parece que jamais se chegou a
defini-Ia em lei
escrita,
mas era estabelecida como costume. Dos inúmeros casais romanos cujos nomes
chegaram aos nossos
dias,
não é conhecido um único caso em que o marido e a mulher tenham o mesmo nome
gentílico. Outra
prova
dessa regra é a do direito de herança, na forma com que era adotado: a mulher
saía da gens ao casar-se,
perdia
seus direitos agnáticos, nem ela nem os filhos que tivesse poderiam herdar de
seu pai (dela) ou dos
irmãos
deste. A gens não podia perder os gens dos seus membros que morressem, como
aconteceria
fatalmente
se outras leis de herança prevalecessem. E essa regra não teria sentido se a
mulher não fosse
impedida
de casar com um membro da sua Gens.
5.
Posse da terra em comum. Existiu sempre nos tempos primitivos, desde que se
repartiu o território
da
tribo pela primeira vez. Entre as tribos latinas, encontramos o solo possuído
em parte pela tribo, em parte
pela
gens, em parte por casas, que na época dificilmente seriam de famílias
individuais. Atribui-se a Rômulo
a
primeira divisão de terra entre indivíduos, á razão de dois jugera para cada um
(mais ou menos um hectare).
Mais
tarde, contudo, vamos encontrar a terra ainda em mãos da gens, e isso sem falar
nas terras do Estado,
em
torno das quais gira toda a história interna da república.
6.
Obrigação dos membros da gens de se ajudarem mutuamente e de se socorrerem. Na
história escrita
vamos
encontrar apenas vestígios disso: o Estado romano, desde sua aparição,
manifestou-se bastante forte
para
chamar a si o direito de proteção contra as ofensas. Quando Ápio Cláudio foi
preso, sua gens inteira
vestiu
luto, inclusive seus inimigos pessoais. E, ao tempo da segunda guerra púnica,
as gens se associaram
para
pagar ,o resgate de seus membros aprisionados, mas o senado proibiu-as de
fazê-lo.
7.
Direito de usar o nome gentílico. Manteve-se até a época dos imperadores. Aos
próprios escravos
alforriados
era concedida permissão para usar o nome gentílico de seus antigos senhores;
conquanto não lhes
correspondessem,
é claro, quaisquer direitos gentílicos.
8.
Direito de adotar estranhos na gens. Era a adoção por uma família (como entre
os índios
americanos),
que trazia com ela a adoção pela gens.
9.
Direito de eleger e depor o chefe, não mencionado em parte alguma. Como, porém,
nos tempos
primitivos
de Roma, todos os postos começando pelo de rei, eram preenchidos por eleição ou
aclamação, e
até
os sacerdotes das cúrias eram eleitos por elas, é razoável que admitamos o
mesmo quanto aos chefes
(príncipes)
das gens, ainda que pudesse ser regra eiegê-los de uma mesma família.
Tal
era a constituição de uma gens romana. Excetuada a passagem ao direito paterno,
já realizada, ela
é
a imagem fiel do conjunto de direitos e deveres de uma gens iroquesa. Ainda
aqui, "reconhece-se o
iroquês".
Eis
um exemplo da confusão que ainda hoje impera nos trabalhos até dos nossos mais
famosos
historiadores,
relativamente à organização da gens romana: no que Mommsen escreveu sobre os
nomes
próprios
romanos da época republicana e dos. tempos de Augusto (Pesquisas Romanas,
Berlim, 1864) podese
ler
- "O nome gentílico é usado não só pelos membros masculinos da família,
incluídos os adotados e os
clientes
(e com a natural exceção dos escravos), mas, ainda, pelas mulheres... A tribo
(Stamm: assim
Mommsen
traduziu gens) é um conjunto.. . nascido da comunidade de origem, seja ela
real, suposta ou
inventada,
e mantido unido por-cerimônias religiosas, sepulturas e herança comuns. Todos
os indivíduos
livres,
as mulheres também, podem e devem integrá-la. O difícil é estabelecer o nome
gentílico das mulheres
casadas.
É certo que essa dificuldade não existia quando a mulher se casava com um homem
da sua gens, e
está
provado que durante muito tempo lhe foi bem mais difícil casar-se fora do que
dentro da gens. O gentis
enuptio
era ainda concedido como privilégio especial no século VI... Mas, quando tais
matrimônios fora da
gens
se realizavam, nos tempos primitivos, a mulher devia passar à tribo do marido.
Nada está mais
assegurado
do que o ingresso da mulher, com desvinculamento completo da sua própria
comunidade, na
comunidade
legal religiosa do marido, pelo antigo matrimônio religioso. Quem ignora que a
mulher casada
perdia
todos os direitos ativos e passivos de herança quanto à sua gens de origem, mas
adquiria esses direitos
quanto
à gens de seu marido e de seus filhos ? E, desde que seu marido a adota como a
uma filha e a integra
em
sua família, como poderia ficar fora da gens do mesmo ?" .
Mommsen
assevera, portanto, que as mulheres romanas, a princípio, não podiam casar
senão dentro
da
gens a que pertenciam. Por conseguinte, para ele a gens romana era endógama e
não exógama. Essa
opinião,
que está em contradição com tudo que pudemos observar em outros povos, fundamenta-se
sobretudo,
e talvez exclusivamente, num único trecho, aliás muito discutido, de Tito Lívio
(livro XXXIX,
cap.
19), de acordo com o qual o Senado decidiu, no ano 568 de Roma (186 antes de
nossa era), o seguinte:
uti
Feceniae Hispallae datio, deminutio, gentis enuptio, tutoris optio item esset
quasi ei vir testamento
dedisset;
utique ei ingenuo nubere liceret, neu quid ei qui eam duxisset, ob id fraudi
ignominaeve esset - quer
dizer:
que Fecênia Hispala seria livre de dispor de seus gens, diminuí-los, de
casar-se fora da gens, de
escolher
um tutor para si como se o seu (defunto) marido lhe houvesse concedido esse
direito por testamento;
assim
como lhe seria lícito contrair núpcias com um homem livre sem que houvesse
fraude nem ignomínia
para
quem se casasse com ela.
É
indubitável que a Fecênia, uma liberta, se dá aqui o direito de casar fora da
gens. E não é menos
evidente,
pelo que vem antes, que o marido tinha direito de permitir por testamento à sua
mulher que se
casasse
fora da gens após a sua morte. Mas, fora de qual gens ?
Se,
como supõe Mommsen, a mulher devia casar-se no seio de sua gens, permanecia na
mesma gens
depois
do seu matrimônio. Mas, antes de tudo,. o que falta provar, precisamente, é
essa pretendida endogamia
das
gens. Em segundo lugar, se a mulher devia casar-se dentro de sua gens,
naturalmente havia de acontecer
o
mesmo ao homem, pois sem isso não poderia encontrar mulher. E, nesse caso,
chegamos ao ponto em que o
marido
podia transmitir testamentariamente à sua mulher um direito que ele mesmo não
possuía para si; quer
dizer,
eis-nos chegados a um absurdo jurídico. Assim também o entende Mommsen, e
conjectura então que
"para
o matrimônio fora da gens, necessitava-se, juridicamente, não só do
consentimento da pessoa que podia
autorizá-lo,
mas de todos os outros membros da gens". Em primeiro lugar, esta é uma
suposição muito
audaciosa;
em segundo lugar, a contradiz o próprio texto da passagem citada. Com efeito, o
Senado dá esse
direito
a Fecênia em lugar de seu marido; confere-lhe expressamente nem mais nem menos
do que lhe teria
podido
conferir o marido; mas o Senado dá aqui à mulher um direito absoluto, sem
limitação alguma, de
forma
que, fazendo ela uso desse direito, não pudesse sobrevir por isso o menor
prejuízo a seu novo marido.
O
Senado chega até a encarregar os cônsules e pretores, presentes e futuros, dos
cuidados por que não seja
prejudicado
o direito de Fecênia. Assim, pois, a hipótese de Mommsen parece em absoluto
inaceitável.
Suponhamos
agora que a mulher se casasse com um homem de outra gens, mas permanecesse ela
mesma
em sua gens de origem. Nesse caso, segundo o trecho citado, seu marido teria
tido o direito de
permitir
à mulher o casamento fora da própria gens desta; quer dizer, teria tido o
direito, de formular
disposições
relativas a uma gens à qual ele não pertencia. Isso é tão absurdo que não vale
a pena perder
tempo
com o assunto.
Não
resta, portanto, senão a seguinte hipótese: a mulher casava em primeiras
núpcias com um homem
de
outra gens, e em conseqüência desse casamento passava incondicionalmente à gens
do marido como o
admite
Mommsen em casos dessa espécie. Com isso, tudo se explica. A mulher, arrancada
à sua gens de
origem
pelo casamento e adotada na gens do marido, tem nesta uma situação muito
particular. Torna-se
membro
de uma gens à qual não está ligada por qualquer vínculo de consangüinidade; a
própria maneira por
que
ela foi adotada isenta-a da proibição de casar dentro da geras em que entrou
exatamente pelo casamento.
E
mais: admitida no grupo matrimonial da gens, em caso de morte de seu marido,
herda alguma coisa dos
gens
deste, isto é, dos gens de um membro da gens. Haverá algo mais natural do que a
obrigação da viúva de
casar
dentro da gens do seu falecido marido, para evitar que os gens do extinto se
evadam ? E, se for preciso
abrir
uma exceção, quem mais competente para autorizá-la do que o primeiro marido,
legatário dos referidos
gens
? No momento em que cede parte de seus gens e permite à mulher que venha a
levá-los, por ou em
conseqüência
de um casamento ulterior, a uma gens estranha, o marido ainda é o dono dos
gens, e não está
fazendo
mais do que dispor, literalmente, de uma propriedade sua. No que tange à mulher
mesma e à sua
situação
relativamente à gens do marido, foi ele quem a introduziu nesta, e por um ato
de sua livre vontade: o
matrimônio.
Parece, pois, igualmente natural que seja ele a pessoa própria para autorizá-la
a sair dessa gens
por
meio de novas núpcias. A coisa parece simples e compreensível, desde que
abandonemos a idéia
extravagante
da endogamia da gens romana e a consideremos originariamente exógama, como
fazia Morgan.
Mas
ainda fica uma última hipótese - que também tem tido seus defensores, e
bastante numerosos -
segundo
a qual a passagem de Tito Lívio significa simplesmente que "as jovens
alforriadas (libertae) não
podiam,
sem autorização especial, et gente enubere (casar fora da Gens) ou realizar
qualquer ato que, em
virtude
da capitis deminutio miníma, ocasionasse a saída da liberta da união
gentílica". (Lange, Antiguidades
Romanas,
Berlim, 1856, tomo I, pág. 195, onde se faz referência a Huschke com respeito à
nossa passagem
de
Tito Livio). Se esta hipótese é correta, o trecho citado não tem nada a ver com
as romanas livres, e então
há
muito menos fundamento para falar de sua obrigação de casar dentro da gens.
A
expressão enuptio gentis só é encontrada neste trecho e não se repete em toda a
literatura romana. A
palavra
enubere (casar fora) encontra-se mais três vezes, as três em Tito Lívio e sem
referência à gens. A
idéia
fantástica de que as romanas somente se pudessem casar dentro de suas gens deve
sua existência a esta
passagem,
exclusivamente. De modo algum é possível sustentá-la, porque, ou a frase de
Tito Lívio aplica-se
apenas
a restrições especiais concernentes às libertas – ou se refere a estas últimas,
igualmente, e nesse caso
prova
que, como regra geral, a mulher casava fora de sua gens e pelas núpcias passava
à gens do marido.
Portanto,
o próprio trecho discutido pronuncia-se contra Mommsen e a favor de Morgan.
Cerca
de trezentos anos depois da fundação de Roma, os laços gentílicos ainda eram
tão fortes que
uma
gens patrícia, a dos Fábios, pôde empreender por sua própria conta, e com o
consentimento do Senado,
uma
expedição contra a cidade próxima de Veies. Conta-se que trezentos Fábios
puseram-se em marcha, e
foram
todos mortos em uma emboscada; salvou-se um único rapaz, que se tinha atrasado
em caminho e foi
quem
perpetuou a gens.
Conforme
dissemos, dez gens formavam uma fratria, que aqui se chamava cúria e tinha
atribuições
mais
importantes que as de sua correspondente grega. Cada cúria tinha suas praticas
religiosas, seus
santuários
e sacerdotes; estes últimos, constituídos num organismo, formavam um dos
colégios sacerdotais
romanos.
De dez cúrias se compunha uma tribo, que originalmente, como as demais tribos
latinas, deve ter
tido
um chefe eleito - supremo comandante na guerra e grão-sacerdote. O conjunto das
três tribos era o povo
romano,
o populus romanus.
Desse
modo, ninguém podia pertencer ao povo romano se não fosse membro de uma gens e,
consequentemente,
de uma cúria e de uma tribo. A primeira constituição desse povo foi como se
segue. A
gestão
dos negócios públicos era da competência do Senado, composto dos chefes das
trezentas gens,
conforme
Niebbur foi o primeiro a compreender; por serem dos mais velhos em suas gens,
estes chefes
chamavam-se
patres, pais; o conjunto deles ficou sendo o Senado (de senex, velho - conselho
dos anciãos). A
escolha
habitual do chefe para cada gens no seio das mesmas famílias criou, também
aqui, a primeira nobreza
gentílica.
Essas famílias chamavam-se patrícías e pretendiam para elas a exclusividade no
Senado e ocupação
dos
demais cargos públicos. 0 fato de que, com o tempo, o povo se fosse submetendo
a tais pretensões e
deixasse
que elas se transformassem em direito real é, a seu modo, uma explicação da
lenda que dizia ter
Rômulo,
desde o início, concedido aos senadores e aos descendentes dos mesmos os
privilégios do
patriciado.
O Senado, tal como a bulê ateniense, tinha poderes para decidir em muitos
assuntos e proceder á
discussão
preliminar dos mais importantes, sobretudo das leis novas. Quem as votava,
contudo, era a
assembléia
do povo, chamada comitia curiata (comícios das cúrias). O povo se reunia,
agrupado por cúrias, e
em
cada cúria provavelmente por gens, cada cúria contando com um voto na decisão
das questões. Os
comícios
das cúrias aprovavam ou rejeitavam todas as leis, elegiam todos os altos
funcionários, inclusive o
rex
(o chamado rei), declaravam guerra (mas a paz era concluída pelo Senado) e, na
qualidade de Supremo
Tribunal,
julgavam as apelações nos casos de sentença de morte contra cidadão romano. Por
fim, ao lado do
Senado
e da assembléia do povo, ficava o rex, correspondendo exatamente ao basileu
grego - e de modo
algum
um monarca quase absoluto, como no-lo apresenta Mommsen. O rex era também chefe
militar, grãosacerdote
e
presidente de certos tribunais; não tinha funções civis ou poderes de qualquer
espécie sobre a
vida,
a liberdade e a propriedade dos cidadãos, desde que tais direitos não
proviessem da sua condição de
chefe
militar no exercício de funções disciplinadoras ou de presidente de tribunal no
exercício de atribuições
judiciárias.
As funções de rex não eram hereditárias e sim eletivas; as cúrias escolhiam o
rex em comício,
provavelmente
de acordo com uma proposta do seu predecessor, e empossavam-no solenemente em
outra
reunião.
Também podia ser deposto, como prova o que aconteceu a Tarquínio, o Soberbo.
Tal como os
gregos
da época heroica, os romanos no tempo dos chamados reis viviam, portanto, numa
democracia militar
baseada
nas gens, nas fratrias e nas tribos, e desenvolvida a partir delas. Embora as
cúrias e as tribos possam
ter
sido, em parte, formadas artificialmente, nem por isso deixavam de estar
constituídas de acordo com o
modelo
genuíno e natural da sociedade de que se originaram, modelo que ainda as
envolvia por toda parte. É
certo,
também, que a nobreza patrícia, surgida naturalmente, já ganhara terreno, e os
reges tratavam de,
pouco
a pouco, estender suas atribuições, mas isso não muda em nada o caráter inicial
dessa constituição - e é
ele
que nos importa.
Entretanto,
a população da cidade de Roma e do território romano acrescentado por conquista
foi
crescendo,
em parte devido á imigração, em parte pela integração de habitantes das regiões
submetidas, na
maioria
de povos latinos. Todos estes novos súditos do Estado (deixando de lado a
questão dos clientes)
viviam
fora das antigas gens, cúrias e tribos e, por conseguinte, não faziam parte do
populus romanus, do
povo
romano propriamente dito. Eram, pessoal mente, livres; podiam possuir terras,
estavam obrigados a
pagar
impostos e sujeitos ao serviço militar. Não podiam, todavia, exercer qualquer
função pública, ou tomar
parte
nos comícios das cúrias, ou beneficiar-se da distribuição das terras
conquistadas pelo Estado.
Constituíam
a plebe, excluída de todos os direitos públicos. Pelo constante aumento do seu
número, pela
própria
instrução militar que recebiam e por seu armamento, acabaram por se converter
em uma força
ameaçadora
para o antigo populus, agora hermeticamente fechado para todo novo elemento
vindo de fora. A
terra,
além do mais, ao que parece estava dividida com certo equilíbrio e desde cedo -
entre o populus e a
plebe,
mas a riqueza comercial e industrial, ainda que pouco desenvolvida, pertencia à
plebe, em sua maior
parte.
Em
vista das trevas que envolvem a história legendária de Roma - trevas tornadas
mais espessas pelos
ensaios
nacionalistas e pragmáticos de interpretação e as narrações mais recentes
devidas a escritores de
formação
jurídica, os quais nos servem de fonte - é impossível dizer algo de concreto a
respeito do fim, do
curso
e das circunstâncias da revolução que acabou com a antiga constituição
gentílica. O que se sabe, ao
certo,
é que suas causas estão ligadas aos conflitos entre a plebe e o populus.
A
nova constituição, atribuída ao rex Sérvio Túlio é apoiada em modelos gregos,
principalmente na de
Solon,
criou uma nova assembléia do povo, na qual eram admitidos ou não,
indistintamente, os indivíduos do
populus
e da plebe, segundo tivessem, ou não, feito o serviço militar. Ficou dividida
em seis classes,
conforme
a riqueza, toda a população masculina, sujeita ao serviço militar. Os gens
mínimos das cinco
classes
superiores eram: 100 000 ases para a primeira, 75 000 para a segunda, 50 000
para a terceira, 25 000
para
a quarta e 11 000 para a quinta - cifras que, segundo Dureau de Ia Malle,
correspondem respectivamente
a
14 000, 10 500, 7 000, 3 600 e 1 570 marcas. A sexta classe, a dos proletários,
compunha-se dos mais
pobres,
isentos do serviço militar e dos impostos. Essa nova assembléia popular dos
comícios das centúrias
(comida
centuriata) era integrada por cidadãos militarmente formados por companhias de
cem homens, cada
uma
das quais tinha um voto. A primeira classe dava 80 centúrias, a segunda 22, a
terceira 20, a quarta 22, a
quinta
30 e a sexta, por mera formalidade, uma centúria. Além dessas, havia 18
centúrias formadas por
cavaleiros,
isto é, pelos cidadãos mais ricos. No total, as centúrias eram 193. Para se
obter maioria, eram
requeridos
97 votos; e, como os cavaleiros e a primeira classe juntos dispunham de 98 –
tinham assegurada a
maioria
-, quando estavam de acordo nem consultavam as outras classes e tornavam, sem
elas, as resoluções
definitivas.
A
esta nova assembléia passaram todos os direitos políticos da anterior, da
assembléia das cúrias
(exceto
alguns puramente nominais); como aconteceu em Atenas, as cúrias e as gens que
as compunham
viram-se
rebaixadas à condição de simples associações privadas e religiosas e, com essa
forma, vegetaram
ainda
por muito tempo - ao passo que a assembléia das cúrias não tardou em cair no
completo esquecimento.
Para
excluir também do Estado as três primitivas tribos gentílicas, foram criadas
quatro tribos territoriais,
cada
uma das quais residindo em um determinado distrito da cidade e tendo direitos
políticos definidos.
Assim
se destruiu, em Roma, antes da supressão do cargo de rex, a antiga ordem social
fundamentada
nos
vínculos de sangue. Uma nova constituição a substituiu, uma autêntica
constituição de Estado, baseada
na
divisão territorial e nas diferenças de riquezas. A força pública, aqui, era
formada pelo conjunto dos
cidadãos
sujeitos ao serviço militar - e não só se opunha aos escravos como, também, se
opunha à classe dita
proletária,
excluída do serviço militar e impedida de usar armas.
A
nova constituição recebeu um impulso em seu desenvolvimento com a expulsão do
último rex,
Tarquínio,
o Soberbo, usurpador de poderes realmente imperiais, e com a substituição do
rex por dois
comandantes
militares (cônsules) dotados de iguais poderes (como entre os iroqueses). Sob a
égide dessa
constituição,
processa-se toda a história da república romana, com suas lutas entre patrícios
e plebeus pelo
acesso
aos empregos públicos, pela distribuição de terras do Estado, até a dissolução
final da nobreza patrícia
na
nova classe dos grandes proprietários de dinheiro e de terras. Estes absorveram
aos poucos toda a
propriedade
rural dos camponeses arruinados pelo serviço militar, passaram a cultivar, por
meio de escravos,
os
imensos latifúndios assim formados, acabaram por despovoar a Itália e, com
isso, abriram caminho não
apenas
para o império como para o domínio dos bárbaros germanos, que sucedeu ao
império.
Próximo capitulo: A Gens entre os Celtas e entre os Germanos
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