Passaram-se dois anos desde que na primavera
de 2011 os primeiros protestos inflamavam as ruas de algumas cidades sírias.
Viu-se em seguida em muitos desses movimentos, só aparentemente espontâneos, um
efeito dominó de tudo quanto tinha sido desencadeado e acontecido poucos meses
antes na Tunísia e no Egito e estava acontecendo na Líbia.
Por Maurizio Musolino, em Marx21
Por Maurizio Musolino, em Marx21
Al-Manar
Civis e
soldados fazem carreata em tanques após a retomada do controle da cidade de
Al-Qusair, estratégica pelo seu posicionamento, na fronteira com o Líbano.
De fato, também graças a uma insistente campanha de desinformação por parte da quase totalidade da mídia, ocorre um tipo de equação cega, por um lado o governo sírio repentinamente se torna “ditatorial e criminoso”, por outro os manifestantes são considerados paladinos da “democracia e liberdade”.
Um veredito fácil: quem ama a democracia não pode senão desejar uma rápida queda do ditador de Damasco. O presidente sírio, em cuja porta poucas semanas antes muitos empresários ocidentais (inclusive de nosso país) batiam para realizar negócios e acordos, torna-se um demônio, alguém “insuportável” a remover, ou melhor a suprimir. Um roteiro que não era novo, pois foi anteriormente usado com Milosevic, Saddam Hussein e por último com Kadafi. Certamente, líderes longe de poderem ser considerados campeões da democracia, mas cuja verdadeira culpa era a de se recusarem a ficar sob o guarda-chuva dos Estados Unidos.
Na primavera de 2011 assistimos ainda a um ataque duríssimo contra todas as vozes dissonantes, e precisamente os comunistas italianos experimentam na própria pele a sua coerência internacionalista e anti-imperialista que há tempos os levaram a ter relações de estima e amizade com o Partido Comunista Sírio.
É claro que um partido como o Baath, que detém o governo de uma nação há mais de quarenta anos, é percebido por parte da população como elemento de fechamento, aliás, seria surpreendente se entre os jovens não fossem muitos os que aspiram a uma mudança radical do quadro político. Emotivamente é compreensível. E isto é ainda mais normal se esse partido tem à sua frente uma família, a família Assad, e se esta família provém de uma confissão religiosa historicamente minoritária no país, os Alauitas.
A isto se deve acrescentar que alguns setores do poder sírio (inclusive no interior da família dos Assads), há tempos críticos sobre algumas aberturas de Bashar Assad, talvez colhidos de surpresa pelas primeiras manifestações, opuseram a esses protestos uma reação tão despropositada quanto insensata. Recordemos tudo o que aconteceu em Daraa, quando uma manifestação totalmente pacífica é reprimida a sangue pelas forças policiais. Os primeiros protestos representavam um sentimento difuso, embora talvez não majoritário, e seguramente sentiam os efeitos das notícias que chegavam de Túnis e do Cairo. O rei estava nu, podia ser abatido, deposto, então por que não tentar também em Damasco?
Recorde-se, porém, que Bashar Assad busca imediatamente um diálogo com os manifestantes: o responsável pela polícia da região de Daraa é destituído e no final de abril anuncia o término do estado de “emergência”, em vigor desde 1963. Bashar anuncia também uma temporada de reformas da maior envergadura e pede tempo às massas críticas ao governo.
A origem do protesto tem motivações totalmente internas, sem subestimar as tentativas de desestabilização postas em prática pelos Estados Unidos e potências ocidentais há mais de uma década. Há meses o governo de Damasco estava empenhado num duríssimo debate, que envolvia também o Parlamento, sobre a alienação de ativos centrais para a economia do país a partir dos energéticos e hídricos. A privatização das centrais elétricas, por exemplo, tinha registrado um forte interesse da EDF, a multinacional francesa com as mãos na massa em muitas situações da crise internacional. Sobre este tema a discussão foi duríssima e nela os próprios comunistas sírios estavam nas primeiras fileiras na luta contra a venda de setores que segundo eles teria debilitado a soberania nacional da Síria. O mesmo vale para a privatização de outros setores e para a liberalização de algumas tarifas, o que tinha levado ao debilitamento do poder aquisitivo dos salários e portanto a um empobrecimento difuso de amplos setores da população.
A isto se deve somar que a Síria saía de três anos de duríssima seca, que tinha tornado praticamente desérticas vastas terras da região interiorana entre Latakia e Homs, notoriamente possuídas pelas famílias da burguesia sunita, causando crise e descontentamento entre as pessoas. Ao agravar esta situação, segundo alguns estudiosos, se somavam alguns acordos com a vizinha Turquia sobre a exploração de algumas fontes hídricas ao longo do curso do rio Eufrates, no norte do país. Por último, mas nem por isso de menos efeito, a crise econômica mundial que mesmo com atraso começava a fazer sentir os seus estragos na região do Oriente Médio.
Estes elementos centrais estavam entre as palavras de ordem dos primeiros protestos e eram mais do que suficientes para fazer acender o fogo da revolta, que, porém, no primeiro momento não punham em discussão o governo e não raro eram dirigidas pelas forças progressistas participantes da Frente Patriótica Nacional que há décadas dirige a Síria. Mas paralelamente ao desencadeamento dessas legítimas manifestações, começa o plano dos serviços secretos dos Estados Unidos para pôr fim ao único governo da região que não aceitava a ideia do “grande Oriente Médio”, tão caro à família Bush e jamais renegado por Obama. As manifestações foram logo infiltradas, frequentemente ocorreram verdadeiras provocações, inclusive armadas, com o objetivo de despertar a reação da polícia. Reação que não se fez esperar e como recordávamos anteriormente, às vezes foi desnecessariamente violenta.
Mais ou menos em torno do final do verão, o cenário se modifica. A praça não existe mais e em seu lugar aparece uma verdadeira guerrilha armada sempre mais monopolizada por elementos externos à Síria. Foi significativo o discurso de Barack Obama, pronunciado em 21 de agosto perante a organização filoisraelense Aipac, em que admite a possibilidade de o Pentágono tomar em consideração uma intervenção armada por parte dos Estados Unidos. Mas quem estava na primeira fileira da linha intervencionista era a França, que depois das ações militares na Líbia parecia invadida pelo espírito neocolonial que a leva a um desmedido ativismo no cenário africano e do Oriente Médio.
Na Síria paralelamente à questão interna e a uma lógica de ingerência geopolítica por parte dos Estados Unidos e da Europa, joga-se uma outra partida: aquela que vê a oposição entre o mundo sunita das petromonarquias, e o xiita, dirigido pelo Irã. O cavalo de Troia dos primeiros é o movimento dos Irmãos Muçulmanos, desde sempre totalmente comprometido com a grande finança internacional e com o liberalismo e traços de união com os regimes da Arábia Saudita, do Catar, da Jordânia e a Casa Branca, em virtude de um acordo tácito feito com a ex-responsável pela política externa dos Estados Unidos, Hillary Clinton, durante a visita de Obama ao Cairo em junho de 2009. Mais ou menos nesses mesmos meses da explosão da revolta na Síria, ocorria no vizinho Líbano um revolvimento da aliança, que tinha visto o Hezbolá, ligado ao xiismo iraniano, expulsar democraticamente do governo o partido Mustaqbal de Hariri, sunita filossaudita. Um golpe indigesto para o regime de Riad.
Mais ou menos nestes meses entra em cena um protagonista que há anos aspira a um papel hegemônico na região: a Turquia de Erdogan e do neo-otomanismo propugnado por seu ministro do Exterior. O alinhamento ao lado das petromonarquias por parte do governo de Ancara é visto por Bashar Assad como uma punhalada nas costas porque precisamente com o líder turco nos últimos anos tinha-se desenvolvido uma intensa colaboração tanto política como econômica.
Como se chega a essa ruptura? Erdogan se convenceu de que as relações de boa vizinhança inaugurada há vários anos com a Síria eram o prelúdio de um tipo de otomanização dos países árabes. Considera que Damasco deva aceitar o seu protetorado sem reclamar espaços de autonomia, condição preliminar para não fazer cair o apoio da Turquia em um momento difícil como foi o início da crise síria. Estas exigências foram, porém, consideradas inaceitáveis por Damasco. A partir daqui começa a contenda, abre-se um crescente fosso, graças à pressão da Casa Branca e da Otan que pela primeira vez vê uma chance de livrar-se de Assad.
Com efeito, muitos apostavam numa rápida queda do presidente sírio, no rastro do que ocorreu a Ben Ali, Mubarak e Kadafi. Mas todos até hoje estão desiludidos.
O ano de 2012 foi duríssimo para a Síria, até então quase isolada do mundo e sob o contínuo ataque dos bandos armados que se opõem ao governo de Damasco. São milhares os combatentes – mas talvez seja melhor chamá-los com o nome mais apropriado: os mercenários - chegados dos quatro cantos do mundo árabe para exportar também para a Síria o chapéu de Washington em nome do Islã sunita. Bandos que se reconhecem sob a efígie da velha bandeira da Síria colonizada, feita precisamente pelo Exército Lívre Sírio e pela Coalizão Nacional Síria. Não obstante a ingente ajuda em dinheiro, homens e armas, os sucessos são modestos, mas sobretudo os insurgentes não conseguem nas operações o controle de fatias homogêneas de território, eventual lacuna, para impor à Síria por parte da Otan uma nefasta reedição de uma zona de exclusão aérea, prelúdio da guerra no Iraque e na Líbia.
Ao mesmo tempo, o caminho do envolvimento da ONU num esquema anti-Assad foi desta vez esconjurado graças à decidida tomada de posição da Rússia e da China, mas também de forma mais geral dos países do Brics, que provavelmente compreenderam o que ocorreu na Líbia, onde suas hesitações abriram as portas ao protagonismo unilateral da Otan. E se Pequim vê que o que ocorre no Oriente Médio é o primeiro sintoma de um longo conflito que no futuro a oporá aos Estados Unidos e ao seu aliado, o Ocidente, a Rússia tem na Síria interesses muito mais concretos e atuais: antes de tudo, a manutenção da única base militar naval da Rússia no Mediterrâneo estacionada no porto de Tartus. A presença militar russa nestes meses representou um elemento formidável de dissuasão a qualquer tentativa de prova de força no modelo dos primeiros bombardeios franceses em Trípoli. De fato, uma intervenção armada na Síria representaria uma explícita declaração de guerra também à Rússia, com consequências inimagináveis.
Mas se é verdade que a oposição não alcançou o intento de retalhar de maneira estável o território sob controle do governo central, é por outro lado indiscutível que não obstante os ingentes esforços do governo de Damasco, este não conseguiu impor a segurança e a estabilidade na Síria. Cada vez mais o desespero dos opositores se manifesta por meio de atentados suicidas que levam morte e destruições às cidades sírias, mudando mês após mês os costumes da população. Onde, pelo contrário, a obra desetabilizadora de Washington parece não ter conseguido fazer incursões é no plano confessional. A Síria em seu conjunto continua um país interconfessional e a temida “libanização” até hoje não se tornou realidade.
Seguramente, as relações entre sunitas e xiitas e sobretudo entre alauitas e sunitas, e ainda entre estes últimos e o infinito arquipélago do cristianismo, se deterioraram, mas os exemplos do diálogo e da colaboração são muitos. O que se vê é um sentido de reconciliação, um percurso de paz que vê trabalharem juntos cristãos e muçulmanos. Mas deve-se estar atento e não subestimar o risco, precisamente de fragmentação, e o confessionalismo representa um instrumento extraordinário para chegar a isso, que continua sendo o principal objetivo dos Estados Unidos e das potências regionais, leia-se a Arábia Saudita, a Turquia e Israel.
Tudo isto, porém, levou a uma situação de impasse. Um impasse dramático, feito de fome e mortes cotidianas, mas não de todo adverso aos protagonistas anti-Assad. Os Estados Unidos e o próprio Israel, de fato, não desconsideram absolutamente uma situação que torne impotente o governo de Assad, e ao mesmo tempo em que possa chantagear os rebeldes islâmicos, hoje aliados mas possíveis inimigos amanhã. Mesmo porque, ao inicial monopólio da Fraternidade Muçulmana na oposição, semana após semana afirma-se a milícia salafista próxima à Al Qaida. Talvez por esta razão teria mudado a aproximação de alguns países ocidentais que começam a pensar em uma solução que não elimine da cena o bloco de poder próximo ao presidente Assad: a conferência de Genebra tem esse objetivo, mas os trabalhos estão em alto mar e é difícil prever qual será – admitindo que se consiga realizar – o resultado.
Uma sensação semelhante se verifica no interior do chamado pacifismo italiano, que no primeiro momento se alinhou de maneira míope com os opositores. A cada dia esses setores aumentam sua percepção e tomam distância de um alinhamento que revela ser absolutamente submisso à vontade dos Estados Unidos.
Vamos ousar dizer em conclusão qual poderia ser a saída para essa crise. Em minha modesta opinião, estes dois anos mostraram que Assad goza do apoio e da sustentação de uma parte importante de seu povo e ao mesmo tempo que o Exército representa uma coluna ineludível da unidade nacional. Por outro lado, embora dividida e distante da população – que sente que ela é estranha – a oposição graças aos recursos que lhe chegam dos países que são seus amigos, conserva vigor e força. Com estes dois elementos, todos devem fazer cálculos, a partir da oposição, primeiramente aquela que é síria e desejosa de trazer a paz ao país. No próximo ano terminará o mandato presidencial de Assad e em torno disso se poderia jogar uma partida que tenha por fiador a Rússia e que busque limitar os vencedores e os enfrentamentos. O risco contrário é que se acendam outros focos, a começar pelo vizinho Líbano, onde em torno de Trípoli e Sidon se combate como se fossem partes da Síria. O envolvimento fraternal do partido Hezbolá, que teve um papel chave na libertação da cidade de Qusayr, e a presença dos mercenários sunitas leva ao risco de aprofundar um novo conflito no pequeno país do cedro.
Como me dizia um grande intelectual árabe, Talal Salman, diretor do jornal libanês Assafir, quando eu lhe pedia uma luz sobre a crise na Síria e no Líbano, “as chaves da paz nesta região estão nas capitais de outros países… Paris, Washington, Londres, Riad, Ancara, Teerã…”. Uma verdade sempre muito atual.
Maurizio Musolino é jornalista italiano, especialista em Oriente Médio e membro da direção do Partido dos Comunistas Italianos
Fonte: O VERMELHO
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