Há 65 anos, no dia 7 de julho de 1948, nascia David Capistrano da Costa Filho, falecido em novembro de 2001. Em um de seus últimos discursos, David declarou que era favorável a uma estratégia de confronto, contrapondo-se à tentação que já contaminava parte da esquerda, de confundir movimentos táticos necessários com renúncia à vocação hegemônica e ao programa de classe.
Breno Altman
Há 65 anos, no dia 7 de julho de 1948,
nascia David Capistrano da Costa Filho, falecido em novembro de 2001.
Morreu jovem. Mas deixou uma herança política nada desprezível, a ser
recuperada nessas horas de crise.
Sua história é bastante conhecida. Seus pais foram militantes revolucionários desde os anos 30 do século passado. O velho David, assassinado pela ditadura militar em 1974, despedaçado por seus torturadores sem revelar mais que seu nome e posição no comando do PCB, está entre as lendas da esquerda brasileira. Lutou na Guerra Civil contra o franquismo, na Espanha, e contra o nazismo na resistência francesa.
Muito poderia ser escrito sobre a trajetória do próprio David, o filho. Além de ativista estudantil desde a adolescência mais tenra e dirigente respeitado por amigos e inimigos, talvez tenha sido o principal quadro progressista na formulação e implantação de uma estratégia para a saúde pública.
Acima de tudo, se algo tivesse que ser destacado em sua personalidade, David era um bravo. Não possuía papas na língua ou cerimônia. Não temia desafios ou dificuldades. Seu coração era enorme, tinha uma generosidade humana sem limites, o tirocínio político tinha lampejos de genialidade, além de excelente organizador e aglutinador de vontades. Mas era mesmo um homem de confronto, cristalino em suas ideias e incansável no bom combate.
Nos últimos anos de vida, preocupava-se com o destino do PT. Suas frases sobre o tema, sempre ferinas, fazem parte da antologia guardada por seus pares. Tinha muita admiração pela base petista. Integrante do diretório nacional, não teve cuidados sequer consigo mesmo ao afirmar: “O PT é composto por soldados vietnamitas, sargentos norte-americanos e generais paraguaios.”
Não se conformava com os limites para a construção de um estado-maior partidário que pudesse se constituir na direção político-cultural de um bloco histórico no qual os anseios das classes trabalhadoras se fundisse com o projeto socialista.
Temia que o partido no qual ingressara em 1986, logo após se afastar do PCB, acabasse como uma estrutura domesticada e burocratizada, como uma máquina eleitoral incapaz de disputar a hegemonia na sociedade e no Estado. “O PT corre o risco de assimilar todos os defeitos do PCB e nenhuma de suas virtudes”, brincava com seriedade.
David tinha horror atávico à pasmaceira e à mediocridade. Quando era secretário de Saúde, em Santos, a cidade vivia crise com o Hospital Anchieta, uma instituição psiquiátrica privada. Políticos normais, especialmente os do nosso tempo, montariam uma comissão de estudos, fariam alguma negociação que acomodasse interesses entre o proprietário e as famílias dos pacientes, sempre alegando que a correlação de forças não permitiria mais que pequenos passos. Mas David chutou a porta, decretou a intervenção imediata no manicômio, fez dessa ação um exemplo público. Só não mandou prender o dono do Anchieta porque lhe faltava poder de polícia.
Também decidiu distribuir seringas descartáveis entre os viciados do município praieiro, como política de contenção diante do alastramento da AIDS. O repúdio da imprensa, da oposição de direita e do Ministério Público foi brutal. Acusavam David de estar incitando criminosamente o consumo de drogas. Pernambucano da melhor cepa, não respeitou sequer liminar da Justiça que o mandara suspender o programa.
Desconsiderando recomendação da secretária de Negócios da Prefeitura, que sumisse por uns tempos porque um promotor havia pedido sua prisão, David fez questão de ir ao tribunal, apenas para dizer que seria uma honra ser preso por quem representava os interesses mais atrasados e conservadores da cidade. Era desses homens que honrava o hino nacional: verás que um filho seu não foge à luta.
Em um de seus últimos discursos, pouco antes de fazer o transplante de fígado que o levaria à morte, David declarou que era favorável a uma estratégia de confronto, contrapondo-se à tentação que já contaminava parte da esquerda, de confundir movimentos táticos necessários com renúncia à vocação hegemônica e ao programa de classe.
Cometeu a indelicadeza de ir precocemente embora. Era um gigante da política, cada vez mais dominada por anões. Faz uma falta danada.
*Breno Altman, é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.
Fonte: Carta Maior
Sua história é bastante conhecida. Seus pais foram militantes revolucionários desde os anos 30 do século passado. O velho David, assassinado pela ditadura militar em 1974, despedaçado por seus torturadores sem revelar mais que seu nome e posição no comando do PCB, está entre as lendas da esquerda brasileira. Lutou na Guerra Civil contra o franquismo, na Espanha, e contra o nazismo na resistência francesa.
Muito poderia ser escrito sobre a trajetória do próprio David, o filho. Além de ativista estudantil desde a adolescência mais tenra e dirigente respeitado por amigos e inimigos, talvez tenha sido o principal quadro progressista na formulação e implantação de uma estratégia para a saúde pública.
Acima de tudo, se algo tivesse que ser destacado em sua personalidade, David era um bravo. Não possuía papas na língua ou cerimônia. Não temia desafios ou dificuldades. Seu coração era enorme, tinha uma generosidade humana sem limites, o tirocínio político tinha lampejos de genialidade, além de excelente organizador e aglutinador de vontades. Mas era mesmo um homem de confronto, cristalino em suas ideias e incansável no bom combate.
Nos últimos anos de vida, preocupava-se com o destino do PT. Suas frases sobre o tema, sempre ferinas, fazem parte da antologia guardada por seus pares. Tinha muita admiração pela base petista. Integrante do diretório nacional, não teve cuidados sequer consigo mesmo ao afirmar: “O PT é composto por soldados vietnamitas, sargentos norte-americanos e generais paraguaios.”
Não se conformava com os limites para a construção de um estado-maior partidário que pudesse se constituir na direção político-cultural de um bloco histórico no qual os anseios das classes trabalhadoras se fundisse com o projeto socialista.
Temia que o partido no qual ingressara em 1986, logo após se afastar do PCB, acabasse como uma estrutura domesticada e burocratizada, como uma máquina eleitoral incapaz de disputar a hegemonia na sociedade e no Estado. “O PT corre o risco de assimilar todos os defeitos do PCB e nenhuma de suas virtudes”, brincava com seriedade.
David tinha horror atávico à pasmaceira e à mediocridade. Quando era secretário de Saúde, em Santos, a cidade vivia crise com o Hospital Anchieta, uma instituição psiquiátrica privada. Políticos normais, especialmente os do nosso tempo, montariam uma comissão de estudos, fariam alguma negociação que acomodasse interesses entre o proprietário e as famílias dos pacientes, sempre alegando que a correlação de forças não permitiria mais que pequenos passos. Mas David chutou a porta, decretou a intervenção imediata no manicômio, fez dessa ação um exemplo público. Só não mandou prender o dono do Anchieta porque lhe faltava poder de polícia.
Também decidiu distribuir seringas descartáveis entre os viciados do município praieiro, como política de contenção diante do alastramento da AIDS. O repúdio da imprensa, da oposição de direita e do Ministério Público foi brutal. Acusavam David de estar incitando criminosamente o consumo de drogas. Pernambucano da melhor cepa, não respeitou sequer liminar da Justiça que o mandara suspender o programa.
Desconsiderando recomendação da secretária de Negócios da Prefeitura, que sumisse por uns tempos porque um promotor havia pedido sua prisão, David fez questão de ir ao tribunal, apenas para dizer que seria uma honra ser preso por quem representava os interesses mais atrasados e conservadores da cidade. Era desses homens que honrava o hino nacional: verás que um filho seu não foge à luta.
Em um de seus últimos discursos, pouco antes de fazer o transplante de fígado que o levaria à morte, David declarou que era favorável a uma estratégia de confronto, contrapondo-se à tentação que já contaminava parte da esquerda, de confundir movimentos táticos necessários com renúncia à vocação hegemônica e ao programa de classe.
Cometeu a indelicadeza de ir precocemente embora. Era um gigante da política, cada vez mais dominada por anões. Faz uma falta danada.
*Breno Altman, é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.
Fonte: Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário