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quarta-feira, 3 de julho de 2013

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (VI)


Friedrich Engels


GÊNESE DO ESTADO ATENIENSE







Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu,
pelo menos na primeira fase da sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos da
constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com
poderes realmente governamentais - quando uma "força pública" armada, a serviço dessas autoridades ( e
que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro "povo em armas", que
havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos. Morgan descreve principalmente as
modificações formais; as condições econômicas que as produziram, tive eu mesmo que acrescentá-las, em
grande parte.
Na época heróica, as quatro tribos dos atenienses ainda estavam instaladas em diferentes territórios da
titica. Mesmo as doze fratrias que as compunham parece que tinham diferentes instalações nas doze cidades
de Cecrope. A constituição era a da época heróica: assembléia do povo, conselho e basileu. Até onde alcança
a história escrita, encontramos a terra já repartida e como propriedade privada, o que corresponde á produção
e ao comércio de mercadorias relativamente desenvolvido da fase superior da barbárie. Além de cereais,
vinho e azeite eram produzidos. O comércio marítimo no Mar Egeu passava cada vez mais dos fenícios aos
áticos. Como conseqüência da compra e venda da terra e da crescente divisão do trabalho entre a agricultura
e os ofícios manuais, comércio e navegação, logo se confundiram os membros das gens, fratrias e tribos. Nos
territórios das fratrias e das tribos, fixaram residência habitantes que, embora fossem do mesmo povo, não
faziam parte daquelas corporações e, por conseguinte, eram estranhos a elas e ao local. Eram estranhos
porque, em tempos de paz, cada fratria e cada tribo administravam, elas mesmas, seus assuntos internos, sem
consultar o conselho popular ou o basileu de Atenas, e esses habitantes que passavam a residir na área da
fratria e da tribo não podiam, naturalmente, tomar parte na administração delas.
Isso desequilibrou de tal modo a organização gentílica que, nos tempos heróicos, se tornou necessário
modificá-la e adotou-se a constituição atribuída a Teseu. A principal mudança foi a instituição de uma
administração central em Atenas; parte dos assuntos que até então eram resolvidos independentemente pelas
tribos foi declarada de interesse comum e transferida ao conselho geral, sediado em Atenas. Os atenienses
foram, com isso, a um ponto ao qual não chegou qualquer dos povos indígenas da América: a simples
confederação de tribos vizinhas foi superada pela fusão de todas em um único povo. Daí nasceu o sistema de
leis ateniense popular, mais evoluído que o das tribos e das gens. Garantiam-se, assim, os cidadãos de
Atenas, quanto a certos direitos e proteção legal, mesmo em territórios que não pertenciam ás suas tribos.
Deu-se, dessa forma, o primeiro passo no sentido da ruína da constituição gentílica, o primeiro passo no
sentido da admissão de cidadãos que não pertenciam a qualquer das tribos da Ática e que não eram, nem se
tornaram integrantes da organização gentílica ateniense. A segunda instituição atribuída a Teseu foi a divisão
de todo o povo em três classes: os eupátridas ou nobres, os geômoros ou agricultores e os demiurgos ou
artesãos, - sem considerar a divisão em gens, fratria e tribo - garantida para os nobres a exclusividade do
exercício das funções públicas. É verdade que, tirante a exclusividade garantida à nobreza, essa divisão não
teve qualquer efeito mais importante, pois não estabelecia nenhuma outra distinção de direitos entre as
classes; mas sua importância para nós é a de indicar os novos elementos sociais que, imperceptivelmente, se
iam desenvolvendo. Ela demonstra que o costume de herança de cargos públicos por certas famílias na gens
já se tinha transformado em um direito quase incontestado; que essas famílias, poderosas por suas riquezas,
começaram a formar, fora de suas gens, uma classe privilegiada especial; e que o Estado nascente sancionou
essa usurpação. Demonstra que a divisão do trabalho entre camponeses e artesãos se tinha tornado
suficientemente forte para disputar a primazia em importância social à antiga divisão em gens e tribos. Por
fim, é a proclamação nítida do inconciliável antagonismo entre a sociedade gentílica e o Estado; o primeiro
sintoma de formação do Estado consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada
gens em privilegiados e não privilegiados, e dividindo estes últimos em duas classes, segundo seus ofícios, e
opondo-as uma à outra.
A história política de Atenas no seguinte período, até Solon, é muito imperfeitamente conhecida. As
funções do basileu caíram em desuso; arcontes saídos da nobreza passam a dirigir o Estado. A autoridade da
aristocracia vai aumentando cada vez mais, até chegar a se tornar insuportável, por volta do ano 600 antes da
nossa era. Os principais meios para estrangular a liberdade comum foram o dinheiro e a usura. A nobreza
residia principalmente em Atenas e em seus arredores, onde o comércio marítimo, misturado com ocasional
pirataria, a enriquecia e concentrava dinheiro em suas mãos. Desde então, o sistema monetário que se
desenvolvia penetrou, como um ácido corrosivo, na vida tradicional das antigas comunidades agrícolas,
baseadas na economia natural. A constituição das gens é inteiramente incompatível com o sistema monetário:
a ruína dos pequenos agricultores da Ática coincide com o relaxamento dos velhos laços da gens que os
protegiam. As letras de câmbio e a hipoteca (porque os atenienses já tinham inventado a hipoteca) não
respeitaram nem a gens nem a fratria. A velha constituição das gens desconhecia o dinheiro, bem como o
crédito e as dívidas fiduciárias. Por isso, o poder do dinheiro nas mãos da nobreza, poder incessantemente
aumentado, criou um novo direito consuetudinário de garantia do credor contra o devedor e de apoio à
exploração dos pequenos agricultores pelos possuidores de dinheiro. Todos os distritos rurais da Ática
estavam crivados de hipotecas, afixadas em marcas onde se podia ler que as terras onde se achavam a marca
estavam hipotecadas por tanto (em dinheiro) a fulano de tal (pessoa). Os campos que não tinham tais marcas
é porque geralmente haviam sido vendidos, já que suas hipotecas teriam vencido e não foram pagas, pelo que
o nobre a quem estavam hipotecados os adquirira. O camponês podia considerar-se feliz quando este novo
proprietário nobre lhe permitia estabelecer-se ali como colono e viver com um sexto do produto do seu
trabalho, pagando ao dono os cinco sextos restantes como arrendamento. E mais: quando o produto da venda
do lote de terra não bastava para cobrir o montante da dívida hipotecária, e não havia com que cobrir a
diferença, o camponês devedor tinha que vender seus filhos nos mercados de escravos estrangeiros para
satisfazer por completo o seu credor. A venda dos filhos pelo pai foi, pois, o primeiro fruto do direito paterno
e da monogamia. E, se, ainda assim, o vampiro não se saciasse, podia vender como escravo seu próprio
devedor. Essa foi a aurora da formosa civilização do povo ateniense.
Semelhante revolução teria sido impossível no passado, quando as condições de existência do povo
ainda correspondiam à constituição gentílica; mas agora isso ocorria - e sem que ninguém entendesse como.
Voltemos, por um instante, aos iroqueses: entre eles era inconcebível uma situação como essa agora imposta
aos atenienses, por assim dizer sem a sua participação e, certamente, contra a sua vontade. Entre os iroqueses,
permanecendo o mesmo o modo de produzir as coisas necessárias à existência, nunca se poderiam criar tais
conflitos, como que impostos de fora, jamais se poderia engendar um antagonismo entre ricos e pobres,
exploradores e explorados. Os iroqueses estavam muito longe ainda do domínio da natureza, embora dentro
dos limites que esta lhes fixava fossem os donos de sua própria produção. A parte as más colheitas em suas
hortas, a escassez de peixe em seus lagos e rios e da caça em seus bosques, sabiam qual podia ser o fruto do
seu modo de proporcionar os meios de subsistência. Sabiam que, umas vezes abundantemente, outras não,
determinados recursos de subsistência deveriam ser obtidos. Mas não seriam obtidas revoluções sociais
imprevistas, ruptura dos vínculos gentílicos ou cisão das gens e das tribos em classes socialmente
antagônicas. A produção se realizava dentro dos mais estreitos limites, mas os que produziam eram donos
daquilo que produziam. Esta era a imensa vantagem da produção bárbara, vantagem que se perdeu com o
advento da civilização e que as gerações futuras terão o dever de reconquistar, dando-lhe por base o poderoso
domínio da natureza que o homem já conseguiu em nossos dias, e a livre associação hoje tornada possível.
Entre os gregos, as coisas eram diferentes. A aparição da propriedade privada dos rebanhos e dos
objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias. Este foi o
germe da revolução subseqüente. Quando os produtores deixaram de consumir diretamente os seus produtos,
desfazendo-se deles mediante comércio, deixaram de ser donos dos mesmos. Já não podiam saber o que ia
ser feito dos produtos, nem se algum dia ( conforme se tornou possível) estes seriam utilizados contra os
produtores, para explorá-los e oprimi-los. Por essa razão, aliás, é que nenhuma sociedade pode ser dona de
sua própria produção, pelo menos de um modo duradouro, nem controlar os efeitos sociais de seu processo
de produção, a não ser pela extinção da troca entre os indivíduos.
Os atenienses, porém, deviam aprender, e rapidamente, como, ao nascer a troca entre os indivíduos e
ao se transformarem os produtos em mercadorias, o produto vem a dominar o produtor. Com a produção de
mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. Mais tarde
veio o dinheiro, a mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas; mas, quando os
homens inventaram o dinheiro, não suspeitavam que estavam criando uma força social nova, um poder
universal único, diante do qual se iria inclinar a sociedade inteira. Este novo poder, subitamente aparecido,
sem que o desejassem ou sequer compreendessem seus próprios criadores, fez-se sentir aos atenienses com
toda a brutalidade da sua juventude.
Que se podia fazer ? A antiga constituição gentílica se havia mostrado impotente contra o avanço
triunfal do dinheiro; e além disso era absolutamente incapaz de abranger, dentro de suas limitações de
concepção, conceitos como dinheiro, credores, devedores, cobrança compulsiva das dívidas. E, no entanto -
ali estava o novo poder social; nem os piedosos desejos nem o ardente afã por voltar aos bons tempos
passados conseguiram expulsar do mundo o dinheiro ou a usura. Além disso, outras brechas menos
importantes foram abertas na constituição gentílica: a mistura dos membros das geras e das fratrias por todo o
território ático, particularmente na cidade de Atenas, aumentava de geração em geração, embora naquele
tempo um ateniense ainda não pudesse vender fora da gens a sua casa de moradia, embora pudesse vender
lotes de terra em geral. Com os progressos da indústria e do comércio, se havia aprofundado mais e mais a
divisão do trabalho entre os diferentes setores da produção - a agricultura e os ofícios manuais - e entre estes
últimos (os ofícios manuais) uma infinidade de subdivisões, tais como o comércio, a navegação, etc. A
população se dividia agora, segundo suas ocupações, em grupos bem definidos, cada um dos quais tinha urna
série de novos interesses comuns, para os quais não havia lugar na gens ou na fratria, levando à criação de
novas funções que, precisamente, zelassem por eles. Havia crescido muitíssimo o número dos escravos que,
naquela época, já excedia sobejamente o dos atenienses livres. A constituição da gens não conhecia, a
princípio, escravidão alguma; não sabia, por conseguinte, manter sob o seu jugo uma massa de pessoas não
livres. E, por último, o comércio havia atraído a Atenas uma multidão de estrangeiros, que se tinha instalado
ali, em busca de lucro fácil - e, apesar da tolerância tradicional, esses adventícios não gozavam de qualquer
direito ou proteção legal sob o velho regime, pois constituíam para o povo um elemento estranho P um foco
de mal-estar.
Em resumo: a constituição gentílica ia chegando ao fim. A sociedade, crescendo a cada dia,
ultrapassava o marco da gens; não podia conter ou suprimir nem mesmo os piores males que iam surgindo à
sua vista. Enquanto isso, o Estado se desenvolvia sem ser notado. Os novos grupos, formados pela divisão do
trabalho (primeiro entre a cidade e o campo, depois entre os diferentes ramos de trabalho nas cidades),
haviam criado novos órgãos para a defesa dos seus interesses, e foram instituídos ofícios públicos de todas as
espécies. O jovem Estado precisou, então, de uma força própria, que, para um povo de navegadores como os
atenienses, teve que ser, em primeiro lugar, uma força naval, usada em pequenas guerras e na proteção dos
barcos de comércio. Num tempo incerto, antes de Solon, foram instituídas as naucrárias, pequenas
circunscrições territoriais, doze em cada tribo. Cada naucrária devia prover, armar e tripular um barco de
guerra e, ainda, dispor de dois cavaleiros. Essa instituição minava a gens em dois pontos: primeiro porque
criava uma força pública que não era de modo algum idêntica ao povo em armas; segundo, pela primeira vez,
dividia o povo nos negócios públicos, não conforme grupos consangüíneos e sim de acordo com a residência
comum. Vamos ver a significação disso.
Como o regime gentílico não podia prestar qualquer auxílio ao povo explorado, este tinha que se -
voltar mesmo para o Estado nascente, que lhe acabou prestando a desejada ajuda pela constituição de Solon,
com o que aproveitou para se fortalecer ainda mais, em detrimento do velho regime. Não vamos falar aqui de
como se realizou a reforma de Solon, no ano 594 antes de nossa era. Solon iniciou a série das chamadas
revoluções políticas e o fez com um ataque à propriedade. Até hoje, todas as revoluções têm sido contra um
tipo de propriedade e em favor de outro; um tipo de propriedade não pode ser protegido sem que se lese
outro. Na grande Revolução Francesa, a propriedade feudal foi sacrificada para que se salvasse a propriedade
burguesa; na revolução de Solon, a propriedade dos credores sofreu em proveito da dos devedores: as dívidas
foram simplesmente declaradas nulas. Ignoramos os pormenores, mas Solon se gaba, em seus, poemas, de ter
feito arrancar aos campos hipotecados as marcas de dívida e de ter propiciado o repatriamento dos homens
que, endividados, foram vendidos como escravos ou fugiram para o estrangeiro. Isso não podia ser feito
senão por uma flagrante violação dos direitos de propriedade. E, na realidade, desde a primeira até a última
dessas chamadas revoluções políticas, todas elas se fizeram em defesa da propriedade, de um tipo de
propriedade, e se realizaram por meio do confisco dos gens (dito de outro modo: do roubo) por outro tipo de
propriedade. Tanto é assim que há dois mil e quinhentos anos não se tem podido manter a propriedade
privada senão com a violação dos direitos da propriedade.
Tratava-se, porém, na ocasião, de impedir que os ateniense s livres pudessem ser escravizados
novamente. A princípio, conseguiu-se isso com medidas gerais, por exemplo, proibindo os contratos de
empréstimo nos quais o devedor dava por garantia a sua pessoa. Além disso, fixou-se a extensão máxima de
terra que um mesmo indivíduo podia possuir, com o propósito de pôr um freio à avidez dos nobres de se
apoderarem das terras dos camponeses. Depois, houve mudanças na própria constituição; consideramos como
principais as seguintes:
O conselho elevou-se até quatrocentos membros, cem de cada tribo. Até aqui, a tribo seguia sendo,
pois, a base do sistema. Mas este foi o único ponto da constituição antiga adotado pelo Estado recém-nascido.
No mais, Solon dividiu os cidadãos em quatro classes, de acordo com a sua propriedade territorial e a
produção desta. Os rendimentos mínimos fixados para as três primeiras classes foram de quinhentos,
trezentos e cento e cinqüenta medimnos de grão, respectivamente (um medimno equivale a uns quarenta e
um litros); os que possuíam menos terra ou não a tinham de modo algum formavam a quarta classe. Só
podiam ocupar os cargos públicos em geral os indivíduos das três primeiras classes, e os cargos atais
importantes cabiam apenas aos indivíduos da primeira classe; a quarta classe não tinha sertão o direito de
usar da palavra e votar nas assembléias. Era nessas assembléias que se elegiam os funcionários todos; nelas
eles tinham de prestar contas de sua gestão, elaboravam-se todas as leis, e a maioria estava em mãos da
quarta classe. Os privilégios aristocráticos foram renovados, em parte, sob a forma de privilégios da riqueza,
mas o povo obteve o poder supremo. Por outro lado, as quatro- classes formaram a base de uma nova
organização militar. As duas primeiras forneciam cavalaria, a terceira servia na infantaria de linha, e a quarta
como tropa ligeira (sem couraça) ou na frota; é provável que esta classe servisse a soldo.
Introduzia-se agora, portanto, um elemento novo na constituição: a propriedade privada. Os direitos e
os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam e, na
medida em que ia aumentando a influência das classes abastadas, iam sendo abandonadas as antigas
corporações consangüíneas. A constituição gentílica sofria outra derrota.
Entretanto, a gradação dos direitos políticos segundo a propriedade não era uma dessas instituições
sem as quais o Estado não pode existir. Por maior que seja o papel representado na história das constituições
dos Estados por essa gradação, grande número deles, e precisamente os mais desenvolvidos, prescindiram
dela. Na própria Atenas, essa instituição só representou um papel transitório; desde Aristides, todas as
funções públicas eram acessíveis a qualquer cidadão.
Durante os oitenta anos que se seguiram, a sociedade ateniense tomou gradativamente a direção que se
tornou efetiva em seu desenvolvimento nos séculos posteriores. Pusera-se freio à usura dos latifundiários
anteriores a Solon, bem como à concentração excessiva da propriedade territorial. O comércio e os ofícios,
incluídos os artísticos, que se praticavam cada vez mais largamente, com base no trabalho escravo, chegaram
a ser as ocupações principais. As pessoas ilustravam-se mais. Em lugar de explorar os concidadãos de
maneira iníquia, como a princípio, o ateniense passou a explorar os escravos e os estrangeiros. Os gens
móveis, a riqueza como dinheiro, o número dos escravos e dos navios cresciam sem cessar; mas ao invés de
constituírem simples meios de adquirir terras, como no período anterior, cheio de limitações, converteram-se
em uma finalidade por si mesma. De um lado, a nobreza antiga no poder encontrou, assim, competidores
vitoriosos nas novas classes de ricos industriais e comerciantes; mas, de outro lado, ficou destruída também a
última base dos restos da constituição gentílica. A gens, as fratrias e as tribos, cujos membros já andavam
dispersos por toda a Ática e viviam completamente misturados, tornaram-se de todo inúteis como
corporações políticas. Muitos, inúmeros cidadãos atenienses, não mais pertenciam a qualquer gens; eram
imigrantes que haviam conseguido o direito de cidadania, não tendo sido, porém, admitidos em união
gentílica alguma. Além disso, cada dia era maior o número de imigrantes estrangeiros que só gozavam do
direito de proteção.
Enquanto isso, prosseguia a luta entre os partidos: a nobreza trabalhava para reconquistar os seus
velhos privilégios e, por algum tempo, foi bem sucedida - até que a revolução de Clístenes ( ano 509 antes de
nossa era) definitivamente a abateu, pando por terra com ela o derradeiro vestígio da constituição gentílica.
Em sua nova constituição, Clístenes ignorou as quatro velhas tribos baseadas nas gens e nas fratrias.
Substituiu-as uma organização nova, cuja base, já ensaiada nas naucrárias, era a divisão dos cidadãos de
acordo com o local de residência. Dividia-se, então, não mais o povo, mas o território: politicamente, os
habitantes se tornaram meros apêndices das regiões.
Toda a Ática ficou dividida em cem municípios (demos). Os cidadãos (derrotas) de cada demos
elegiam seu chefe demarca - e seu tesoureiro, assim como trinta juízes dotados de poderes para resolver os
assuntos de pouca importância. Tinham, igualmente, um templo próprio e um deus protetor ou herói, servido
por sacerdotes eleitos pelo povo. O poder supremo no demos pertencia à assembléia dos derrotas. Conforme
adverte Morgan, com muito acerto, este é o protótipo das comunidades urbanas da América que se governam
por si mesmas. O Estado nascente teve como ponto de partida, em Atenas, a mesma unidade que distingue o
Estado moderno em seu mais alto grau de desenvolvimento.
Dez dessas unidades (demos) formavam uma tribo; mas esta, ao contrário da antiga tribo gentílica
(geschlechtsstamn); chamou-se agora tribo local (Ortsstamn). A tribo local não era apenas um corpo político
auto-administrado, era também um corpo militar. Elegia seu phylarca ou chefe de tribo, que comandava a
cavalaria, um taxiarca para a infantaria e um stratego para o comando de todas as tropas recrutadas no
território da tribo. Armava cinco naves de guerra com seus tripulantes e comandantes. E recebia como
guardião-simbólico um herói da Ática, cujo nome levava. Por último, cabia à tribo, ainda, eleger cinqüenta
conselheiros para o conselho de Atenas.
Coroava este edifício o Estado ateniense, governado por um conselho de quinhentos representantes
eleitos pelas dez tribos e, em última instância, pela assembléia do povo, na qual todo cidadão ateniense tinha
direito a participação e voto. Pela administração da justiça em seus diversos setores, zelavam os arcontes e
outros funcionários. Em Atenas não havia depositário supremo do poder executivo.
Com essa nova constituição, e pela admissão de um grande número de clientes (Schutzwerwandter),
em parte imigrantes e em parte ex-escravos, os órgãos da gens ficaram à margem da gestão dos assuntos
políticos, degenerando em associações privadas e em sociedades religiosas. Mas a influência moral, as
concepções e idéias tradicionais da velha época gentílica viveram ainda bastante e só foram desaparecendo
paulatinamente. Foi o que se viu em outra instituição, posterior, do Estado.
Vimos que um dos traços característicos essenciais do Estado, é a existência de uma força pública
separada da massa do povo. Atenas não tinha, ainda, senão um exército popular e uma frota equipada
diretamente pelo povo, que a protegiam contra os inimigos do exterior e mantinham em obediência os
escravos, que já constituíam a maioria da população na época. Para os cidadãos, essa força pública só existia,
a princípio, em forma de polícia; esta é tão velha como o Estado e, por isso, os ingênuos franceses do século
XVIII não falavam de nações civilizadas, mas de nações policiadas ("nations policées"). Os atenienses
instituíram, pois, junto com o seu Estado, uma polícia - um verdadeiro corpo de guardas a pé e a cavalo -
formada de arqueiros, ou, como se diz no Sul da Alemanha e na Suíça: Landiäger. Contudo, esse corpo de
guardas era constituído de escravos. Tal ofício parecia tão indigno para o ateniense livre que ele preferia ser
detido por um escravo armado a cumprir ele mesmo aquelas funções tão aviltantes. Era uma manifestação da
antiga maneira de sentir das gens. O Estado não podia existir sem a polícia; mas, quando jovem, não
conseguia fazer respeitável um ofício tão desprezível aos olhos dos antigos gentílicos - não tinha ainda,
autoridade moral para isso.
O rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e da indústria prova como o Estado, já então
definido em seus traços principais, era adequado à nova condição social dos atenienses. O antagonismo de
classe, no qual se fundamentavam agora as instituições sociais e políticas, não era mais o que existira entre os
nobres e o povo, e sim o antagonismo entre escravos e homens livres, entre clientes e cidadãos. No seu tempo
de maior florescimento, Atenas contava 90 000 cidadãos livres, aí compreendidas as mulheres e as crianças;
os escravos de ambos os sexos, no entanto, somavam 365 000 pessoas, e os imigrantes e libertos chegavam a
45 000. Para cada cidadão adulto havia, no mínimo, dezoito escravos e mais de três metecos. A causa da
existência de um número tão grande de escravos, o que possibilitava esse número, era o fato de trabalharem
muitos escravos juntos, sob as ordens de capatazes, em grandes oficinas manufatureiras. Mas, com o
progresso do comércio e da indústria, vieram o acúmulo e a concentração das riquezas em poucas mãos, e
com isso 0 empobrecimento da massa dos cidadãos livres, aos quais só ficava o recurso de escolher entre:
competir com o trabalho dos escravos, fazendo trabalho manual ( o que era considerado desonroso, baixo, e
era pouco proveitoso), ou converter-se em mendigos. Este último caminho foi escolhido. Como, porém,
constituíam a maior parte dos cidadãos, os que assim fizeram, acabaram por levar à ruína todo o Estado
ateniense. Não foi a democracia que arruinou Atenas, como pretendem os lacaios pedantes dos monarcas no
professorado europeu, e sim a escravidão - que proscrevia o trabalho do cidadão livre.
A formação do Estado entre os atenienses é um modelo notavelmente característico da formação do
Estado em geral, pois, por um lado, se realiza sem que intervenham violências, externas ou internas (a
usurpação de Pisístrato não deixou o menor traço de sua curta duração), enquanto faz brotar diretamente da
sociedade gentílica uma forma bastante aperfeiçoada de Estado, a república democrática, e, por outro lado,
ainda, porque estamos bem informados de suas particularidades mais essenciais.


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