Por Alex Moraes
A grande jogada da mídia corporativa brasileira foi ter conseguido nacionalizar a seu bel prazer os protestos que vinham ocorrendo em diferentes cidades do país há meses. Nacionalizar no sentido de apresentá-los como algo que, supostamente, expressava um conjunto difuso e generalizado de insatisfações. A infiltração da Rede Globo na convocação dos protestos abriu as portas das ruas para a mesma classe média moralista que, há pouco mais de meia década, apoiada pela retaguarda oligárquica, tentara promover uma onda golpista contra o governo de Lula.
O relativo êxito inicial da estratégia da rede Globo e de todos os grandes jornais do país nos obriga a pensar na enorme contradição representada pela atual estrutura midiática e nos seus efeitos nefastos quando se trata de reivindicar o aprofundamento da democracia e da participação popular. Referida contradição pode expressar-se nos seguintes termos: do ponto de vista administrativo, o Brasil possui um arraigado federalismo caracterizado por enormes singularidades políticas locais; do ponto de vista social e cultural, o grau de articulação dos movimentos populares, suas redes de alianças e suas demandas — assim como os impactos específicos do capitalismo desenvolvimentista — mudam de forma substantiva em cada região ou localidade. No entanto, continuamos expostos a um sistema de informação hiper-concentrado sob todos os aspectos (geográfico, econômico, político). Não podemos sobrevalorizar o papel das mídias alternativas e das redes sociais nesse contexto. Sua capacidade de desbloqueio da informação e de produção de outros pontos de vista é ainda bastante limitada — mesmo que crescente — e não joga um papel decisivo sobre a informação de massas.
Interpelados pela escalada conservadora, os movimentos sociais mais representativos articularam uma contra-ofensiva. Convocados por João Pedro Stédile (do MST), reuniram-se em São Paulo na semana passada para estabelecer princípios gerais de articulação. Saíram do encontro comprometidos com pautar as manifestações de rua e estabilizar um conjunto de demandas sintonizadas com os processos de luta historicamente gestados no campo popular: reforma agrária, reforma urbana, reforma política, ampliação radical dos investimentos em educação pública, etc. Na primeira grande manifestação desta semana, ocorrida segunda-feira, em Porto Alegre, os efeitos da presença progressista se fizeram notar: “Que paguem os ricos” dizia a enorme faixa à frente da marcha. Detrás dela era possível divisar dezenas de bandeiras de partidos políticos da esquerda, de sindicatos, e grupos libertários. Não estiveram ausentes as críticas abstratas à corrupção e algum ufanismo, mas sua capacidade de expressão reduziu-se bastante em comparação com situações anteriores.
Os grandes meios de comunicação omitem, mas o conflito entre esquerdas e direitas está posto nas ruas. Ele é um dos elementos dinamizadores do debate político em torno aos protestos atuais. Não seria demasiado otimismo afirmar que a cooptação midiática fracassou em seus objetivos estratégicos iniciais. A disputa de ideias está aberta e o debate ideologizou-se à revelia do hino nacional e das bandeiras verde e amarelas. Esta emergente batalha de ideias complexifica bastante o cenário atual. Por um lado, é necessário disputar nas ruas a hegemonia sobre as marchas, pois ali se encontra a única esfera pública massiva ao alcance da ação política transformadora. Por outro lado, é preciso levar adiante um esforço interpretativo que nos permita recolocar os termos do diálogo e das reivindicações. Para cumprir com o segundo objetivo, devemos começar desmontando alguns “a priori” paralisantes, instilados pelos discursos midiáticos na análise do processo político vigente. Os dois tópicos seguintes são uma contribuição neste sentido.
1) Os protestos não se espalharam do centro para o resto do país.
Esta é a interpretação típica dos grandes jornais e vem sendo comprada por alguns jornalistas de esquerda, como Eric Nepomuceno, que faz a cobertura da situação no Brasil para o jornal argentino Página 12. Para as grandes redes de televisão com sede em Rio e São Paulo não resta a menor dúvida de que as coisas se deram mais ou menos assim: poucos milhares saem às ruas num dia e sofrem forte repressão policial; jornalistas são agredidos; as marchas se massificam e o resto do Brasil copia. Qual o risco de adotarmos tal ponto de vista? Podemos cair na armadilha das “demandas difusas”, do gigante recém-desperto e confuso que precisa ser “aconselhado”. Perdemos, então, nossa capacidade de auto-enunciação, de falar por nós mesmos. Basta ter um pouco de boa vontade para constatar que, pelo menos desde o ano passado, vicejam lutas sociais em todas as grandes cidades brasileiras. Tais lutas denunciaram muitas das mazelas que, hoje, são escancaradas nas manifestações multitudinárias. A crítica dos impactos violentos das obras da Copa sobre a vida das classes populares tem sido difundida de forma constante e progressiva pelos Comitês Populares da Copa; a “higienização” das cidades e a privatização dos espaços públicos também foi o eixo de outros tantos protestos, como a derrubada, em vários pontos do Brasil, do mascote da Copa do Mundo. Em Porto Alegre, por exemplo, a “queda do Tatu Bola” em 2012 desatou uma repressão policial indiscriminada com direito a quebra de câmeras fotográficas e agressão física de vários jornalistas. A respeito do preço dos transportes, o Movimento Passe Livre e outros blocos de luta estavam nas ruas desde muito antes das recentes manifestações em São Paulo. Estes coletivos, formados por estudantes secundaristas e universitários, já haviam conseguido reverter o aumento da passagem em diferentes cidades, algumas delas capitais. Naturalmente os processos sociais têm seus ápices de expressão e isto depende de vários fatores conjunturais. A violência policial em São Paulo, muito visibilizada midiaticamente, sem dúvidas facilitou a difusão nacional das demandas por melhorias no transporte coletivo. Não é possível dizer, contudo, que a posterior “interiorização” dos protestos consistiu em mera cópia do movimento paulista. Seria mais pertinente pensá-la como a proliferação de demonstrações públicas de solidariedade que souberam aproveitar-se do momento favorável para veicular propostas políticas locais. Claro, as classes médias “globalizadas” também deram as caras; mas sem conseguir opacar o caráter visceral e o potencial transformador que os protestos deixavam antever.
2) Não existe um “movimento nacional”. Trata-se da emergência conjunta de exigências específicas, localizadas e por vezes conflitantes.
Não estamos defrontados com uma espécie de “corrente nacional”, algo do tipo “todo o Brasil deu a mão”. Esta é a visão daqueles que não vivem cotidianamente as mazelas e clivagens excludentes engendradas pelos contextos urbanos brasileiros; é o ponto de vista de determinado setor da classe média completamente desprovido de um discurso crítico, arraigado em contradições sociais concretas. Para essa classe média, é muito fácil negligenciar as demandas locais e falar da “nação descontente”, como se se tratasse de um coletivo abstrato, unificado em torno de algumas exigências supostamente gerais, mas que na verdade só descrevem o limite de consciência e imaginatividade característico dos grupos dominantes. Quando contingentes significativos da população aproveitam o atual momento de visibilidade pública das ruas para denunciar a violência policial, exercer participação social, sinalizar os limites do sistema representativo atual e exigir, ao fim e ao cabo, dignidade, não estamos falando de coesão, mas sim de contradição. Estes são sintomas de diferenças irreconciliáveis no marco da presente ordem econômica e política. Desmontar a falácia de “um só povo” (a “cadeia nacional”) e resgatar a profundidade das consignas enraizadas na experiência vivida de pessoas concretas demanda que regressemos ao nível local, às nossas próprias cidades e bairros em busca daquilo que foi suprimido pelo discurso midiático em seu afã por nacionalizar — e cooptar — o descontentamento popular.
A democracia brasileira está sendo reaberta a cotoveladas no meio de uma chuva de bombas de gás. Só seremos povo, só poderemos falar em “todos nós” quando — para retomar a consigna zapatista – o acesso à cidadania for generalizado, quando tenhamos incorporado na vida pública aquelas experiências de sociedade, aqueles sofrimentos e angústias cuja relevância política encontra-se postergada. A primeira grande vitória discursiva dos setores populares nestes protestos foi ter deixado bem claro que as “vozes das ruas” precisam ser escutadas antes das vozes do poder econômico estabelecido. Agora trata-se de enunciar necessidades e urgências em termos transformadores, definir quais são essas vozes e quem é o “povo”, evitar a domesticação do discurso, negar as soluções fáceis que só reiteram o poder das instituições de sempre, sem jamais colocá-las em xeque a partir de outras formas de imaginar o futuro.
Fonte: OUTRASPALAVRAS
A grande jogada da mídia corporativa brasileira foi ter conseguido nacionalizar a seu bel prazer os protestos que vinham ocorrendo em diferentes cidades do país há meses. Nacionalizar no sentido de apresentá-los como algo que, supostamente, expressava um conjunto difuso e generalizado de insatisfações. A infiltração da Rede Globo na convocação dos protestos abriu as portas das ruas para a mesma classe média moralista que, há pouco mais de meia década, apoiada pela retaguarda oligárquica, tentara promover uma onda golpista contra o governo de Lula.
O relativo êxito inicial da estratégia da rede Globo e de todos os grandes jornais do país nos obriga a pensar na enorme contradição representada pela atual estrutura midiática e nos seus efeitos nefastos quando se trata de reivindicar o aprofundamento da democracia e da participação popular. Referida contradição pode expressar-se nos seguintes termos: do ponto de vista administrativo, o Brasil possui um arraigado federalismo caracterizado por enormes singularidades políticas locais; do ponto de vista social e cultural, o grau de articulação dos movimentos populares, suas redes de alianças e suas demandas — assim como os impactos específicos do capitalismo desenvolvimentista — mudam de forma substantiva em cada região ou localidade. No entanto, continuamos expostos a um sistema de informação hiper-concentrado sob todos os aspectos (geográfico, econômico, político). Não podemos sobrevalorizar o papel das mídias alternativas e das redes sociais nesse contexto. Sua capacidade de desbloqueio da informação e de produção de outros pontos de vista é ainda bastante limitada — mesmo que crescente — e não joga um papel decisivo sobre a informação de massas.
Interpelados pela escalada conservadora, os movimentos sociais mais representativos articularam uma contra-ofensiva. Convocados por João Pedro Stédile (do MST), reuniram-se em São Paulo na semana passada para estabelecer princípios gerais de articulação. Saíram do encontro comprometidos com pautar as manifestações de rua e estabilizar um conjunto de demandas sintonizadas com os processos de luta historicamente gestados no campo popular: reforma agrária, reforma urbana, reforma política, ampliação radical dos investimentos em educação pública, etc. Na primeira grande manifestação desta semana, ocorrida segunda-feira, em Porto Alegre, os efeitos da presença progressista se fizeram notar: “Que paguem os ricos” dizia a enorme faixa à frente da marcha. Detrás dela era possível divisar dezenas de bandeiras de partidos políticos da esquerda, de sindicatos, e grupos libertários. Não estiveram ausentes as críticas abstratas à corrupção e algum ufanismo, mas sua capacidade de expressão reduziu-se bastante em comparação com situações anteriores.
Os grandes meios de comunicação omitem, mas o conflito entre esquerdas e direitas está posto nas ruas. Ele é um dos elementos dinamizadores do debate político em torno aos protestos atuais. Não seria demasiado otimismo afirmar que a cooptação midiática fracassou em seus objetivos estratégicos iniciais. A disputa de ideias está aberta e o debate ideologizou-se à revelia do hino nacional e das bandeiras verde e amarelas. Esta emergente batalha de ideias complexifica bastante o cenário atual. Por um lado, é necessário disputar nas ruas a hegemonia sobre as marchas, pois ali se encontra a única esfera pública massiva ao alcance da ação política transformadora. Por outro lado, é preciso levar adiante um esforço interpretativo que nos permita recolocar os termos do diálogo e das reivindicações. Para cumprir com o segundo objetivo, devemos começar desmontando alguns “a priori” paralisantes, instilados pelos discursos midiáticos na análise do processo político vigente. Os dois tópicos seguintes são uma contribuição neste sentido.
1) Os protestos não se espalharam do centro para o resto do país.
Esta é a interpretação típica dos grandes jornais e vem sendo comprada por alguns jornalistas de esquerda, como Eric Nepomuceno, que faz a cobertura da situação no Brasil para o jornal argentino Página 12. Para as grandes redes de televisão com sede em Rio e São Paulo não resta a menor dúvida de que as coisas se deram mais ou menos assim: poucos milhares saem às ruas num dia e sofrem forte repressão policial; jornalistas são agredidos; as marchas se massificam e o resto do Brasil copia. Qual o risco de adotarmos tal ponto de vista? Podemos cair na armadilha das “demandas difusas”, do gigante recém-desperto e confuso que precisa ser “aconselhado”. Perdemos, então, nossa capacidade de auto-enunciação, de falar por nós mesmos. Basta ter um pouco de boa vontade para constatar que, pelo menos desde o ano passado, vicejam lutas sociais em todas as grandes cidades brasileiras. Tais lutas denunciaram muitas das mazelas que, hoje, são escancaradas nas manifestações multitudinárias. A crítica dos impactos violentos das obras da Copa sobre a vida das classes populares tem sido difundida de forma constante e progressiva pelos Comitês Populares da Copa; a “higienização” das cidades e a privatização dos espaços públicos também foi o eixo de outros tantos protestos, como a derrubada, em vários pontos do Brasil, do mascote da Copa do Mundo. Em Porto Alegre, por exemplo, a “queda do Tatu Bola” em 2012 desatou uma repressão policial indiscriminada com direito a quebra de câmeras fotográficas e agressão física de vários jornalistas. A respeito do preço dos transportes, o Movimento Passe Livre e outros blocos de luta estavam nas ruas desde muito antes das recentes manifestações em São Paulo. Estes coletivos, formados por estudantes secundaristas e universitários, já haviam conseguido reverter o aumento da passagem em diferentes cidades, algumas delas capitais. Naturalmente os processos sociais têm seus ápices de expressão e isto depende de vários fatores conjunturais. A violência policial em São Paulo, muito visibilizada midiaticamente, sem dúvidas facilitou a difusão nacional das demandas por melhorias no transporte coletivo. Não é possível dizer, contudo, que a posterior “interiorização” dos protestos consistiu em mera cópia do movimento paulista. Seria mais pertinente pensá-la como a proliferação de demonstrações públicas de solidariedade que souberam aproveitar-se do momento favorável para veicular propostas políticas locais. Claro, as classes médias “globalizadas” também deram as caras; mas sem conseguir opacar o caráter visceral e o potencial transformador que os protestos deixavam antever.
2) Não existe um “movimento nacional”. Trata-se da emergência conjunta de exigências específicas, localizadas e por vezes conflitantes.
Não estamos defrontados com uma espécie de “corrente nacional”, algo do tipo “todo o Brasil deu a mão”. Esta é a visão daqueles que não vivem cotidianamente as mazelas e clivagens excludentes engendradas pelos contextos urbanos brasileiros; é o ponto de vista de determinado setor da classe média completamente desprovido de um discurso crítico, arraigado em contradições sociais concretas. Para essa classe média, é muito fácil negligenciar as demandas locais e falar da “nação descontente”, como se se tratasse de um coletivo abstrato, unificado em torno de algumas exigências supostamente gerais, mas que na verdade só descrevem o limite de consciência e imaginatividade característico dos grupos dominantes. Quando contingentes significativos da população aproveitam o atual momento de visibilidade pública das ruas para denunciar a violência policial, exercer participação social, sinalizar os limites do sistema representativo atual e exigir, ao fim e ao cabo, dignidade, não estamos falando de coesão, mas sim de contradição. Estes são sintomas de diferenças irreconciliáveis no marco da presente ordem econômica e política. Desmontar a falácia de “um só povo” (a “cadeia nacional”) e resgatar a profundidade das consignas enraizadas na experiência vivida de pessoas concretas demanda que regressemos ao nível local, às nossas próprias cidades e bairros em busca daquilo que foi suprimido pelo discurso midiático em seu afã por nacionalizar — e cooptar — o descontentamento popular.
A democracia brasileira está sendo reaberta a cotoveladas no meio de uma chuva de bombas de gás. Só seremos povo, só poderemos falar em “todos nós” quando — para retomar a consigna zapatista – o acesso à cidadania for generalizado, quando tenhamos incorporado na vida pública aquelas experiências de sociedade, aqueles sofrimentos e angústias cuja relevância política encontra-se postergada. A primeira grande vitória discursiva dos setores populares nestes protestos foi ter deixado bem claro que as “vozes das ruas” precisam ser escutadas antes das vozes do poder econômico estabelecido. Agora trata-se de enunciar necessidades e urgências em termos transformadores, definir quais são essas vozes e quem é o “povo”, evitar a domesticação do discurso, negar as soluções fáceis que só reiteram o poder das instituições de sempre, sem jamais colocá-las em xeque a partir de outras formas de imaginar o futuro.
Fonte: OUTRASPALAVRAS
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