Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Aparentemente esses dois termos não se articulam.
Mística é um termo empregado pelas religiões para designar experiências fortes
e extraordinárias de intimidade com o Divino. Bolivarianismo é o movimento
latino-americano, inspirado em Simon Bolívar, o grande libertador do continente.
O bolivarianismo visa à plena libertação política, econômica e cultural de
nossos povos, assim como uma verdadeira integração dos diversos países do
continente. É o processo que atualmente ocorre em vários países do continente,
como Bolívia, Equador, Venezuela e outros. O bolivarianismo propõe uma unidade
que preserva a autonomia de cada país, mas impulsiona a solidariedade e a
profunda consciência de pertencermos todos a uma só "pátria grande”, ou como
chamou José Martí: "Nuestra América”.
É verdade que o cientista político Daniel Hellinger considera Bolívar um "santo secular”. Isso significa que ele viveu uma profunda espiritualidade humana, mesmo sem ter sido especificamente religioso. Desde o tempo de Bolívar e principalmente na segunda metade do século XX, surgiu especialmente na América Latina uma mística de olhos abertos à injustiça do mundo e ao compromisso de transformá-lo. Desde então, pessoas e comunidades vivem essa mística da solidariedade e se consagram à libertação de todos como caminho de intimidade com Deus. Outros vivem essa dedicação profunda à revolução cultural e social como algo que reflete uma experiência amorosa que as próprias pessoas não explicam, mas não as leva diretamente ao religioso.
Como afirma o cientista português Boaventura de Souza Santos: "A América Latina tem sido o continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política”(1). Esse processo de luta vem desde os tempos de Bolívar e passou por muitos momentos diversos. Muitos mártires deram a vida por isso. Desde os anos 60, em nome de sua fé e como atitude espiritual, muitos cristãos participam ativamente dessa caminhada de libertação. Em uma carta circular, enviada de Roma e escrita na noite de 16 de novembro de 1965, Dom Hélder Câmara, então arcebispo de Recife, afirma: "Monsenhor Dell’acqua, assessor e secretário especial do papa Paulo VI, entende e estimula o novo Bolivarismo, (era a forma que então se usava), no sentido do esforço conjunto para a independência econômica do continente, em articulação sempre maior com o 3º mundo... A Igreja precisa aceitar participar desse processo para colaborar com ele. Sem mística, as vaidades naturais de cada povo, os melindres e jogos de interesses não serão superados”(2).
Aí vemos que existe sim uma mística bolivariana e somos chamados a vivê-la. Ela consiste em desenvolvermos em nós um amor solidário organizado e que se concretize em um caminho político libertador. Propõe que vejamos no processo social e político emergente hoje em vários países do continente uma mediação incompleta, mas em caminho para a realização do projeto divino no mundo. E devemos, pessoalmente, viver de acordo com esse projeto. Se realizarmos isso, compreenderemos o que, no século IV, um grande místico cristão, Santo Agostinho escreveu: "Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Deem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer”(3).
Notas:
(1) Cf. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. In Caros Amigos, março 2010, p. 42.
(2) Cf. DOM HELDER CÂMARA, Circulares Conciliares, vol I, tomo III, Recife, CEPE, 2009, p. 253.
(3) AGOSTINHO, Tratado sobre o Evangelho de João 26, 4. Cit. por Connaissance des Pères de l’Église32- dez. 1988, capa.
Fonte: Adital
É verdade que o cientista político Daniel Hellinger considera Bolívar um "santo secular”. Isso significa que ele viveu uma profunda espiritualidade humana, mesmo sem ter sido especificamente religioso. Desde o tempo de Bolívar e principalmente na segunda metade do século XX, surgiu especialmente na América Latina uma mística de olhos abertos à injustiça do mundo e ao compromisso de transformá-lo. Desde então, pessoas e comunidades vivem essa mística da solidariedade e se consagram à libertação de todos como caminho de intimidade com Deus. Outros vivem essa dedicação profunda à revolução cultural e social como algo que reflete uma experiência amorosa que as próprias pessoas não explicam, mas não as leva diretamente ao religioso.
Como afirma o cientista português Boaventura de Souza Santos: "A América Latina tem sido o continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política”(1). Esse processo de luta vem desde os tempos de Bolívar e passou por muitos momentos diversos. Muitos mártires deram a vida por isso. Desde os anos 60, em nome de sua fé e como atitude espiritual, muitos cristãos participam ativamente dessa caminhada de libertação. Em uma carta circular, enviada de Roma e escrita na noite de 16 de novembro de 1965, Dom Hélder Câmara, então arcebispo de Recife, afirma: "Monsenhor Dell’acqua, assessor e secretário especial do papa Paulo VI, entende e estimula o novo Bolivarismo, (era a forma que então se usava), no sentido do esforço conjunto para a independência econômica do continente, em articulação sempre maior com o 3º mundo... A Igreja precisa aceitar participar desse processo para colaborar com ele. Sem mística, as vaidades naturais de cada povo, os melindres e jogos de interesses não serão superados”(2).
Aí vemos que existe sim uma mística bolivariana e somos chamados a vivê-la. Ela consiste em desenvolvermos em nós um amor solidário organizado e que se concretize em um caminho político libertador. Propõe que vejamos no processo social e político emergente hoje em vários países do continente uma mediação incompleta, mas em caminho para a realização do projeto divino no mundo. E devemos, pessoalmente, viver de acordo com esse projeto. Se realizarmos isso, compreenderemos o que, no século IV, um grande místico cristão, Santo Agostinho escreveu: "Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Deem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer”(3).
Notas:
(1) Cf. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. In Caros Amigos, março 2010, p. 42.
(2) Cf. DOM HELDER CÂMARA, Circulares Conciliares, vol I, tomo III, Recife, CEPE, 2009, p. 253.
(3) AGOSTINHO, Tratado sobre o Evangelho de João 26, 4. Cit. por Connaissance des Pères de l’Église32- dez. 1988, capa.
Fonte: Adital
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