Seja por isso, seja por aquilo, as grandes empresas de comunicação olham de lado, desconfiadas, para a CPMI. Contestam como insinceros os motivos de sua convocação e anunciam todo santo dia, como se estivessem fazendo uma denúncia, mas na verdade exprimindo um desejo, o inevitável fracasso dela. Acham normalíssimo o procurador geral da República, beneficiando criminosos, quedar-se três anos com um inquérito em sua gaveta, e o aplaudem por se negar a comparecer à comissão para prestar os esclarecimentos que deve ao país. Mas seus donos ficam eriçados, orelhas em pé, pelo arrepiado, garras expostas, quando deputados “insolentes” (e logo acusados de estar a serviço dos “mensaleiros”) pretendem ouvir, não o poderoso Cidadão Kane, mas o simples preposto que fazia a intermediação entre o crime e a revistona.
Por práticas similares, o grande Ruppert Murdoch teve de prestar satisfações ao parlamento britânico, e ninguém, nenhum jornal, nem lá nem aqui, arguiu ofensa à liberdade de imprensa. Aqui é tamanho o incômodo que Roberto Civita foi brindado com editorial de um grande matutino de empresa “concorrente”, no qual se afirma que ele não é Murdoch. E não é mesmo! Jornalista estrangeiro especialista em “ligações perigosas” é chamado para falar em seminário e explica que não há nada de mais repórter e fonte criminosa andarem conluiados.
A inquietação também ocorre relativamente à Comissão da Verdade, finalmente instalada. No dia mesmo da solenidade no Palácio do Planalto os editoriais clamavam contra os “riscos de revanchismo”, e os mais audaciosos já defendiam a “bilateralidade da apuração”, ou seja, “a investigação de atos praticados por grupos de esquerda que se opuseram ao regime militar”. Outros, estão preocupadíssimos em assegurar-se de que não haverá punições. Quer saber a grande imprensa se o Ministério Público pode utilizar os resultados das investigações para tentar condenar militares (absoluta indiferença relativamente aos criminosos civis) “que cometeram violações”. No Globo do dia 17, o coronel da reserva João Batista Fagundes, representante das Forças Armadas na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, é chamado a falar:
“A Comissão da Verdade é oportuna mas não pode se enveredar pela questão criminal dos agentes do passado. A Lei da Anistia está em vigência e a própria lei que criou a comissão não prevê condenações. No meio das Forças Armadas, o receio é que se abram processos já albergados sob o pálio refletor da anistia.”
Em editorial do dia 12, o mesmo jornal afirma que “a escolha de nomes acima de qualquer suspeita para a Comissão da verdade”(…) ‘…serve de garantia de que a Comissão não extrapolará os limites da Lei da Anistia, já referendada pelo Supremo”.
Esses temores e esses condicionantes talvez expliquem tanto a demora na aprovação da lei (ora, já lá se vão 27 anos desde quando o último general presidente deixou o Palácio do Planalto pela porta dos fundos!), quanto a demora na escolha (elogiada por gregos e troianos) de seus integrantes. Não podendo impedir a apuração (mas tendo podido nesse longo período destruir documentação e provas) busca-se limitar ao máximo o alcance da Comissão. O intuito declarado de impedir o eficaz funcionamento da Comissão já ficara claro quando o legislador estipulou o período de apurações começando em 1946, misturando democracia com ditadura, e alargando o objeto propositalmente, na expectativa de que assim tão amplo ele se tornasse inalcançável, donde, apuração nenhuma.
O que a nação deseja e quer é conhecer os crimes praticados pelo regime militar, e esses crimes começam com a própria ruptura democrática de primeiro de abril de 1964. Naquele momento as Forças Armadas, que como instituição existem para garantir a integridade territorial, a soberania nacional e a segurança de nosso povo, aquele que paga seus salários, soldos e tudo o mais, traíram seu chefe supremo, rasgaram a Constituição e deram início a uma escalada de arbítrios que surrupiou pela violência centenas de mandatos eletivos, milhares de empregos, cortou carreiras profissionais, sepultou esperanças, exilou e desterrou brasileiros, suprimiu a liberdade física de milhares de cidadãos e transformou em letra morta direitos e garantias individuais, a começar pelo direito à expressão livre, e impôs a indignidade da censura prévia, até de livros científicos. Tudo o mais que a história contará é mera consequência. Devem elas, sim, pelo que fizeram, um pedido público de desculpas à Nação, para voltarem a desfrutar do respeito que merecem pelo exercício das suas nobres funções. Estará assim, aberto o caminho para a superação de desconfianças mútuas que ainda estão a toldar, pelo silêncio-tabu, o congraçamento entre civis e militares.
Tudo será possível, menos censurar a História, menos reescrevê-la, menos adulterá-la, pois o tempo, sempre, trará a lume a verdade. Assim, também se contará a História, a aliança entre empresários da comunicação, políticos e militares na preparação do golpe. A história também contará o papel de uma imprensa que, com raríssimas exceções, participou da conspiração, defendeu o golpe e os atos tenebrosos que ele desencadeou, até se ver diante da inevitabilidade de aderir ao irresistível movimento de massas pela democracia que tomou impulso a partir de 1974. Mas isso foi opção ideológica e não passará pela peneira da Comissão.
A palavra final, porém, não será dada nem pelo governo, nem pela imprensa, nem pelos militares, mas pela sociedade, apesar da imprensa. Se a sociedade cruzar os braços, der-se por satisfeita com a simples constituição da Comissão, pouca esperança teremos de resultados satisfatórios. Esta é a hora de as organizações civis voltarem à liça, reaglutinarem-se os perseguidos, os torturados e as famílias dos assassinados. Da força de sua demanda dependerá a profundidade do que será esclarecido.
Carta Capital
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