Por: José Antonio Lima
A presidenta Dilma Rousseff, ao lado dos quatro ex-presidentes da
República vivos, instalou nesta quarta-feira 16 a Comissão da Verdade,
cujo objetivo, exposto na lei 12.528, é “examinar e esclarecer graves
violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988. Antes mesmo
de sua instalação, a comissão se viu envolta em uma celeuma: a comissão
deve focar apenas as violações cometidas por agentes do estado ou
também ofensas aos direitos humanos realizadas por determinados setores
da luta armada? Esta discussão é torta, deslocada da realidade e
encontra suas raízes numa interpretação falsa do que houve em 1964.
A polêmica deriva da falta de precisão do texto que cria a comissão e
não estabelece claramente qual é seu “alvo”. Assim, cabe aos
integrantes da comissão decidir a forma como ela deve atuar. O advogado
José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique
Cardoso, disse inicialmente, à Folha de S.Paulo, que “tudo” seria analisado. No dia seguinte, ao Estado de S.Paulo,
afirmou que o objetivo principal da comissão seria investigar as
violações de direitos humanos cometidos por agentes de Estado.
Companheiros de Dias discordam dele. Paulo Sergio Pinheiro, ministro de
Direitos Humanos no governo FHC, afirmou que o “único lado” é o das
vítimas de violações praticadas por agentes do Estado. A professora e
advogada Rosa Cardoso, defensora de Dilma quando a presidenta foi presa e
torturada nos 1970, concordou com Pinheiro.
A discussão fez dois ex-ministros trocarem acusações. Nelson Jobim,
ministro da Defesa nos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma,
alardeou um acordo supostamente firmado na época da redação do texto.
Segundo Jobim, o acordo previa que ações da esquerda armada também
seriam investigadas. Paulo Vannuchi, ex-ministro da secretaria de
Direitos Humanos da Presidência, acusou Jobim de mentir.
A postura de Jobim ecoa as posições de alguns setores militares. O
general da reserva Marco Antônio Felício da Silva, afirmou ao Estado de S.Paulo
que o objetivo da comissão é colocar os grupos armados “como democratas
e defensores da liberdade e dos direitos humanos quando, no passado,
desejavam a derrubada do governo e a instalação de uma ditadura do
proletariado por meio da luta armada, usando do terrorismo”. O que está
por trás deste tipo de pensamento? Não é preciso ter dúvidas. Para
muitos brasileiros, incluindo diversos militares, o que ocorreu em 31 de
março de 1964 foi correto. Foi, para eles, não um golpe, mas sim uma
revolução para impedir a suposta tomada de poder por comunistas. Essa
versão serve para esconder o fato de que o golpe foi um levante, militar
e civil, apoiado inclusive por empresários e veículos de comunicação,
contra um governo frágil e de pouca habilidade política cuja atuação
indicava a redução de privilégios de algumas das elites nacionais.
Essa argumentação desconsidera dois aspectos fundamentais. O primeiro
confunde o que houve no Brasil entre 1964 e 1985 com uma guerra civil.
Os crimes da esquerda, entre eles atentados terroristas, já foram
investigados e julgados. Os militantes anti-regime eram, do ponto de
vista da lei, criminosos comuns. Alguns dos processos contra eles se
deram em tribunais que consistiam clamorosas farsas. Houve até
condenações à pena de morte, como a do ex-militante Ottoni Fernandes
Júnior. Foi justamente na busca a esses setores da esquerda que o regime
de exceção da época, ilegítimo por não ter sido eleito, cometeu graves
violações de direitos humanos até hoje jamais investigadas.
O segundo aspecto deixado de lado por quem advoga peso igual para as
violações cometidas pelo estado e por civis é que os dois tipos de
violência não podem, de forma alguma, ser igualados. O Estatuto de Roma,
base do Tribunal Penal Internacional, estabelece que crimes contra a
humanidade são “ofensas à dignidade humana, graves humilhações e
degradação” contra “um ou mais seres humanos” que sejam “parte de uma
política de governo ou toleradas por um governo ou autoridade”. No
Brasil, foi exatamente isso o que houve. Agentes do estado, cuja missão
era zelar pelos direitos daqueles sob sua custódia, violaram
sistematicamente, sob ordens superiores e cadeia de comando, esses
direitos e também as constituições vigentes na época. Entre os crimes
citados no Estatuto de Roma estão três que foram amplamente cometidos
pelo estado brasileiro: assassinato, tortura e perseguição política. E
por que há pesos diferentes para a violência estatal e para a cometida
por civis? Porque um mundo civilizado simplesmente não pode conviver com
estados que cometam crimes contra sua própria população.
A Comissão da Verdade tem um objetivo específico e muito claro. Ela
não foi criada para esconder que muitos setores da esquerda nos anos
1960 e 1970 eram também pouco ou nada democráticos, para esquecer
atentados e suas vítimas ou para dizer que o sistema de indenização aos
prejudicados pela ditadura é perfeito. A comissão é uma tentativa de
contar a verdadeira história das violações de direitos humanos que o
estado brasileiro cometeu contra brasileiros e imortalizar este drama
para que ele nunca mais se repita.
Fonte: CartaCapital
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