Escrito por Gabriel Brito |
Em sua batalha diária por atingir o estágio de uma autêntica democracia, o Brasil continua recheado de confrontações políticas e ideológicas em torno do legado da ditadura militar que vigorou no país de 1964 a 1985. Em um dos principais campos dessa disputa, a comunicação, nota-se a mesma polarização, opondo, de um lado, a mídia burguesa e comercial e, de outro, a chamada mídia alternativa. Não se trata de nenhuma casualidade, uma vez que a primeira incitou, festejou e apoiou incondicionalmente o golpe, até os seus estertores, quando, de forma obviamente oportunista, passou a acompanhar os ventos políticos de então, já soprando em direção à democracia. Do outro lado, estão os herdeiros que até hoje tentam substituir todos os órgãos de imprensa desaparecidos nos anos de chumbo, em geral recheados de jornalistas que de alguma forma conheceram de perto a repressão e o arbítrio fardado. Como o Brasil até hoje não se confrontou de fato com seu passado sombrio e com a punição dos carrascos que torturaram, mataram e sumiram a bel prazer com corpos e direitos de opositores políticos, seguem as disputas nas ruas, nas comunicações e na justiça por abertura de arquivos, julgamento de repressores e aplicação de penas punitivas contra aqueles que cometeram os imprescritíveis crimes de lesa humanidade. Aliás, a própria qualificação de tais crimes já mostra o partido tomado pelos citados setores da imprensa. Grupos como Globo, Folha, Estado, Abril insistem nas teses defendidas na lei de Anistia que os próprios militares promulgaram em seu favor. No entanto, convenções e legislações internacionais assinadas pelo Brasil se chocam diretamente com tais preceitos, tidos como inaceitáveis pelo direito internacional. Caso contrário, ficaria difícil punir genocidas, ditadores, torturadores e assassinos em geral de outros regimes autoritários, conforme já procederam alguns países. Por conta disso, o Brasil voltou a ficar na alça de mira da luta mundial pelos direitos humanos, após ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso referente à guerrilha do Araguaia, quando desacatou a ordem de buscar os restos mortais dos guerrilheiros ali mortos em combates contra o exército, que por sua vez continua a homenagear os facínoras do regime de exceção e mostrar lamentável negligência na elucidação de seus crimes. Como era de se imaginar, a mídia que bateu continência ignorou o fato, estampando pequenas notas e mostrando nenhuma indignação com relação à falta de respeito do país e do Estado brasileiro para com suas vítimas. No lado oposto, não faltou a cobertura que uma relevante condenação sofrida pelo país exige, reforçada pelo fato de termos no momento uma ex-guerrilheira na presidência, que por sua vez declarou que os direitos humanos seriam caríssimos ao novo governo. Na mesma esteira - após anos de luta de alguns setores realmente progressistas que ocuparam cargos oficiais nos últimos mandatos, além das vítimas, familiares e militantes anti-ditadura, complementados pelas referidas pressões e condenações externas -, chegou a hora que o país teve de instaurar algum mecanismo de investigação do passado ditatorial, trazendo a público seu rosário de atrocidades. Inicialmente chamada de Comissão da Verdade, Memória e Justiça, esse instrumento a ser implementado pelo atual governo democrático logo se reduziu apenas ao seu primeiro terço, atendendo exatamente a pressões e chantagens dos militares, que encontraram na mídia a eles afinada uma generosa tribuna de revisão e distorções históricas, além da odiosa retórica do medo e das eventuais conseqüências que mexer no passado imundo do país traria. Nesse bojo, algumas posições foram paulatinamente se radicalizando. De um lado, os militares voltavam a ranger dentes, atentos à crescente indignação na população sobre sua impunidade, já vista por boa parte das pessoas como responsável direta pela cultura, precisamente, de impunidade vigente no país - além do nefasto legado de violências praticadas pelas atuais “forças de segurança”, que cometem as mesmas ilegalidades e barbaridades do regime de exceção, porém, em quantidade incomparavelmente superior, caso praticamente único no mundo. Enquanto os familiares e vítimas da ditadura, com seus advogados, começaram a procurar novas interpretações jurídicas para incriminá-los, contando também com a ajuda do Ministério Público, os militares se articulam para protelar o quanto puderem a revisão de sua Lei de Anistia, reconhecida pelo STF como válida. Trata-se de decisão política sem respaldo algum na comunidade e, como dito, direito internacionais. No entanto, serve pra explicar como o Estado brasileiro é repleto de beneficiários e ex-aliados da ditadura, que agora tratam de travar ao máximo a luta por justiça e punição. Apesar disso, os discursos carregados de cinismo na defesa pelo esquecimento do passado, baseados em falsas premissas conciliadoras, continuam a ecoar fortemente pela mídia conservadora. Chamou atenção editorial da Folha de S. Paulo, talvez o jornal mais descaradamente aliado dos militares, intitulado “Respeitem a lei de Anistia”, cujo título e tom dispensam comentários. Fora isso, qualquer nota ou declaração dos chamados ‘milicos de pijama’ ganha espaço nas páginas dos periódicos dos referidos grupos, sempre em viés de ameaça, sugerindo que nossa atual ordem constitucional se encontrará sob risco caso se invista seriamente na elucidação e punição dos crimes da ditadura, além da abertura de seus arquivos – por sinal, outro poço de obscuridade, existindo até hoje importantes documentos em mãos dos repressores. Para fazer o mínimo jogo de cena, vez por outra aparece a opinião ou uma modesta matéria com o lado vitimado, costumeiramente identificado de forma pejorativa como bandos de esquerdistas e comunistas então radicalizados, o que está longe de refletir a realidade da oposição ao regime na época. No entanto, nunca se viram opiniões de seus tradicionais articulistas em favor desse lado com o mesmo volume e contundência das tergiversações pró-militares. Mais uma vez, nota-se uma gritante diferença ao se comparar este jornalismo com o de outros veículos de comunicação menos abastados e conservadores. Nestes, podemos verificar grande quantidade de matérias e artigos dando voz às vítimas da ditadura, além de uma clara orientação editorial de punição de tais crimes e um considerável trabalho em favor da memória, a ser incutida nas novas gerações de leitores. Em geral, tais veículos possuem em suas redações e conselhos editorais jornalistas que sofreram diretamente na carne as violências e censuras perpetradas pela ditadura. São pessoas que trabalharam em diversos jornais e revistas que não mais existem exatamente por não terem se curvado aos militares e resistido até onde fosse possível, inclusive na clandestinidade. Ou trabalharam nos que ainda existem, até a “asfixia” total. Enquanto os referidos veículos dos monopólios midiáticos oferecem todo o espaço desejado pelos oficiais da reserva, sob a alegação de que estes não devem obediência ao Executivo por já não serem da ativa, a mídia da contracorrente vem elevando seu empenho na prática de um jornalismo de memória, mostrando aos brasileiros de hoje a relação direta que este período tem com nosso arremedo de democracia, até hoje cerceada e monopolizada pelos mesmos oligarcas, latifundiários e industriais que tiraram João Goulart do poder pela força dos tanques e fuzis. Outro momento que marcou essa confrontação foi o 48º aniversário do golpe – ou “revolução”, como insistem em chamar os freqüentadores do Clube Militar, desta vez alvo de protestos em sua porta. Sintomaticamente, a PM carioca, até outro dia em greve que pedia, e até recebia, a solidariedade popular, reprimiu os manifestantes, inclusive ferindo alguns com suas famosas armas “não-letais” israelenses. No mesmo fim de semana, o troco foi dado através de um desfile do bloco de carnaval denominado Cordão da Mentira, organizado por alguns movimentos sociais, tanto da política como da cultura, com respaldo de jornalistas e veículos de mídia alternativa. O ato/festa causou impacto ao fazer seu itinerário em cima de marcos simbólicos dos anos de chumbo, como a sede da TFP e a entrada da Folha de S. Paulo, culminando no atual Memorial da Resistência, antiga sede do mal assombrado DOPS, onde se torturou e matou como em poucos lugares. Na seqüência disso, vieram os “escrachos”, inspirados nos atos da população argentina de visitar casas de velhos repressores e denunciá-los pela vizinhança, expondo-os à realidade de suas biografias de maneira que o Estado brasileiro ainda não se encorajou a fazer. Organizados pelo recém-formado Levante Popular da Juventude, os escrachos deram razoável retorno e novo fôlego na luta pelo combate à impunidade ditatorial. Tais fatos, ocorridos num curto espaço de tempo, tornaram a ter a repercussão característica de cada espectro jornalístico e evidenciaram sua polarização. Na mídia comercial, destaque um pouco maior para os protestos diante do Clube Militar, fria e acriticamente, enquanto que os atos de rua posteriores à festa dos saudosos da ditadura praticamente não foram repercutidos. Como não poderia deixar de ser, no outro lado da trincheira, o destaque foi grande, em geral com maior cobertura presencial e posições elogiosas às manifestações. Dessa forma, os debates em torno da herança (e o que dela fazer) da ditadura civil-militar geram uma grande polarização em nossa imprensa, atiçada pela culpa que eternamente carregarão e tentarão esconder os barões da mídia, cujos impérios se solidificaram exatamente por obra deste regime. Ao lado, ao mesmo tempo, da não menos duradoura indignação daqueles que praticam o jornalismo guiados por seus preceitos éticos, sociais e humanitários, autênticas cláusulas pétreas deste ofício. Como se vê, não existe qualquer resquício de “imparcialidade”, outra grande lenda inventada pela mídia patronal. Sempre partidária dos interesses da atual ditadura, a de mercado, essa mídia apela a tais princípios de isenção – ou frigidez – em momentos que lhe convém, quando o assunto incomoda a tal ponto que, na verdade, seus donos sequer gostariam de abordá-lo. Por outro lado, a corrente derrotada na ditadura segue em sua luta por um jornalismo e um país menos bárbaros e mais democráticos, produzindo cada vez mais livros, reportagens, editoriais, documentários sobre esse período de grande vergonha e humilhação. Interpreta que esse momento histórico até hoje influencia e determina rumos na vida de nossa população, seja na política, na distribuição de renda, na educação, na cultura ou nos mais variados direitos humanos. Cabe a cada cidadão, cada vez mais, escolher por onde se informar e orientar. Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania. |
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segunda-feira, 7 de maio de 2012
Ditadura continua polarizando a imprensa brasileira
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