O conceito de “colonialidade do poder” elaborado originalmente pelo peruano Aníbal Quijano em 1992 e ampliado pelo argentino Walter Mignolo em 2010 é fundamental para entendermos os processos de dominação e opressão que ocorrem nas sociedades pós-coloniais. Ele pressupõe que o fim do processo histórico da colonização não significou o fim das relações de colonialidade que seguem controlando a economia, a autoridade, a natureza, os recursos naturais, o gênero, a sexualidade, a subjetividade e o conhecimento. Na década de 90, um grupo de intelectuais intitulado “Modernidade/Colonialidade” trouxe a América Latina para o debate pós-colonial, anteriormente dominado pela atenção aos contextos africano e asiático. Ora, a América Latina foi, de fato, a primeira experiência colonial para a conformação do sistema-mundo moderno capitalista nos termos de Immanuel Wallerstein. E mais do que isto: somos um continente que sofreu e sofre de colonialismos sobrepostos: externo, regional e interno.
O Paraguai é um país que se enquadra nas três categorias. Colonizado por espanhóis e prejudicado sistematicamente pelas várias formas de imperialismo internacional e subimperialismo regional, o Paraguai contemporâneo está na periferia da periferia do sistema internacional e na periferia da América Latina. Sendo uma nação bilíngue e mestiçada, a grande maioria dos paraguaios resiste linguisticamente ao preservar a língua materna e indígena guarani. O país possui cerca de 40% de sua população vivendo em áreas rurais e 50% do PIB paraguaio provêm da agricultura. A informalidade econômica atesta a precariedade das condições de trabalho. Na fronteira territorial com o Brasil, há disputas de terras com os chamados brasiguaios e fluxos de contrabando.
Caudilhismo e autoritarismo são velhos conhecidos na política paraguaia. Institucionalmente são as forças que historicamente representaram o colonialismo interno. O conceito de colonialismo interno se aplica a nações soberanas que após a independência reproduzem internamente o colonialismo de que foram vítimas externamente. Na América Latina as populações indígena e afrodescendente formam historicamente “os condenados da terra”, para usar a expressão de Franz Fanon. A ideia de colonialismo interno denuncia a persistência de estruturas econômicas, políticas, jurídicas e culturais que inferiorizam a grande parte da população colonizada.
Neste contexto, a construção das instituições políticas reflete de forma muito especial a colonialidade do poder. O Paraguai é um país historicamente instável do ponto de vista da política institucional, sendo as elites partidárias da Asociación Nacional Republicana – mais conhecida Partido Colorado – e do Partido Liberal Radical Auténtico representantes de uma oligarquia fundiária conservadora e de setores médios urbanos e rurais mais liberalizados, respectivamente.
Quando, em 2008, este último apoiou a eleição de Fernando Lugo pela Aliança Patriótica pela Mudança – uma coligação de vários partidos de esquerda e centro-esquerda – rompia-se no Paraguai a hegemonia governamental colorada de mais de 60 anos ininterruptos. Fernando Lugo, um ex-bispo católico associado ao pensamento da Teologia da Libertação, representou pela primeira vez a eleição de um presidente da República mais vinculado aos setores populares e organizados da sociedade paraguaia. Não por acaso, a suposta conivência com os movimentos sociais do campo serviu como justificativa para o mau desempenho de suas funções – um artigo muito subjetivo e relativo da Constituição paraguaia que possibilitou seu impedimento.
Ele foi constitucional, no entanto, com vocação claramente golpista. Em menos de 48 horas, o presidente do Paraguai eleito de forma democrática foi destituído sumariamente do seu cargo pela Câmara e Senado, sem apoio popular, direito à defesa, acusação substancial e discussão pública. Assim como o golpe militar ocorrido em Honduras em 2009 e a tentativa frustrada em 2010 no Equador, o golpe constitucional no Paraguai serve de alerta para todas as cidadãs e cidadãos latino-americanos que lutam cotidianamente pela democracia. Revela-nos que paradoxalmente seu funcionamento não é garantido pelas próprias instituições políticas que lhe dão suporte – um balde de água fria nas teorias neoinstitucionalistas.
O processo contínuo de construção da democracia no Paraguai e na América Latina depende, sobretudo, da de-colonização do poder em todas as suas manifestações de colonialismo sobreposto. Não, nós não nos esquecemos da nossa diferença colonial. E é justamente ela que nos unifica.
*Luciana Ballestrin é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Carta Capital
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