A cubana Isabel Monal lembra sua trajetória e analisa o atual processo político e social em seu país
Fonte: BRASIL DE FATO
Milton Pinheiro e Sofia Manzano, de São Paulo (SP)
Em meio à chamada ‘atualização’
do modelo cubano, Isabel Monal pode ser considerada uma das vozes mais
legítimas para comentar o assunto. Ela participou ativamente da
revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara. Dentro do contexto
revolucionário cubano, a filósofa marxista chegou a ser presa nos
Estados Unidos.
Ao Brasil de Fato, a diretora da revista Marx Ahora fala também sobre
sua formação acadêmica e os desafios do socialismo cubano nos dias de
hoje. Monal esclarece que em nenhum momento foi proposto um socialismo
de mercado (referindo-se às últimas diretrizes aprovadas no 6o.
Congresso do Partido Comunista Cubano), mas que, ao mesmo tempo, não se
pode ignorar o tal ‘mercado’.
A filósofa defende que nunca houve dúvidas (entre os cubanos) de que a
“propriedade social” continua sobre os meios de produção. “Em nenhum
momento se propõe liquidar o socialismo, mas atualizá-lo”, destaca.
Brasil de Fato – Conte-nos sobre sua formação e sua história.
Isabel Monal – Meus estudos universitários primeiramente, na área de
pedagogia, foram feitos em Cuba, Havana, mas não era o que me
interessava. Na Universidad de La Habana entre 1950 e 1954. Então de
1955 a 1956, ganhei uma bolsa de estudos para fazer pós-graduação em
educação no San Francisco State College, Califórnia. Após terminar meu
mestrado, no verão de 1956, fui para Universidade de Harvard e me
interessei muito pela filosofia. Fiz dois cursos nesse verão. No ano
seguinte, voltei a Harvard e frequentei cursos na filosofia e na
educação, também no plano teórico, como história das ideias e sociologia
da educação.
E a descoberta de Marx?
Assim, nesse período, tive meu primeiro contato com Karl Marx e a teoria
de que a história tem uma regularidade e leis. Eu tinha, também, uma
sensibilidade sobre os problemas do mundo e dos seres humanos.
Como se deu seu envolvimento com a política?
Nessa época, eu tinha inclinações Apristas (referência a partido peruano
APRA – Aliança Popular Revolucionária Americana) e minha família se
escandalizava porque tudo isso soava a comunismo, e todos estavam meio
assustados com os caminhos que eu estava tomando na vida. O golpe de
Estado de [Fulgêncio] Batista, em 1952, teve um impacto tremendo em
Cuba, para todos nós, uma vergonha, uma impotência. Isso ficou gravado
na minha mente.
Existiam alguns grupos revolucionários?
Sim, naquele momento percebi que Fidel Castro tinha razão, e que somente
uma oposição armada levaria à transformação daquela situação. Quando
voltei, comecei com minha irmã – mais velha que eu três anos – a
procurar contatos com as pessoas de Fidel, e nos incorporamos à luta
clandestina, até que nos descobriram. Mas a polícia não nos alcançava.
Quando caiu o nosso apartamento, nós já tínhamos abandonado o lugar. Eu e
minha irmã já não estávamos lá. Minha irmã foi para Pinar Del Rio, onde
foi capturada, eu fiquei em Havana. Depois de um mês fui presa. Pouco
depois nos mandaram para os EUA. Lá continuamos nossa militância na
Revolução. Lembro-me de um envio de armas que tínhamos que fazer,
através de um porto. Eu estava em um carro e minha irmã em outro, mas o
companheiro que dirigia o carro em que eu estava bateu – imagine um
carro cheio de armas e que bate! Já era final de dezembro e ninguém
sabia que Batista já estava caindo. E nós batemos o carro cheio de armas
no meio do Estado de Ohio. Fomos presos. Ficamos presos mesmo depois da
queda de Batista, o que era ridículo.
O que aconteceu depois disso?
Voltamos logo depois para Cuba. Quando voltei, começou para mim o
turbilhão da revolução; primeiro estive na direção provincial do
movimento, depois – fazíamos várias coisas ao mesmo tempo-, passei a
trabalhar em questões da cultura. A revolução foi se tornando marxista.
Passei do ensino de filosofia à pesquisa com um pequeno grupo criado
para o estudo do marxismo na Universidad de La Habana. Por um tempo
continuei dirigindo o Teatro Nacional, mas depois passei a me dedicar
somente à universidade.
Você teve outras atividades?
Em certo momento fui à Alemanha, na antiga RDA, na Universidade de Bonn,
e passei a estudar o jovem Marx e o jovem Engels. Nesse momento, os
companheiros cubanos estavam tentando nomear um representante na UNESCO
e, por uma série de circunstâncias, após várias recusas dos nomes
apresentados, as Nações Unidas aceitaram a minha nomeação. Fui então
para Paris, onde vivi por 12 anos, trabalhando na UNESCO. Voltei a Cuba
em 1992, em um momento muito difícil da revolução. Em meados dos anos de
1990, apresentei o projeto de criação de uma revista e, finalmente em
1996, começou a sair Marx Ahora, e desde então ela sai com muitas
dificuldades.
As dificuldades da revista estão relacionadas com a crise, ou você acredita que tenha mudado a relação com o marxismo?
Essencialmente com a crise. Temos dificuldade em manter a qualidade
gráfica, o material da capa é caro e a crise traz muitas dificuldades
para manter uma revista, é uma batalha contínua.
De que forma o marxismo está presente?
Mesmo tendo havido um retorno do ensino do marxismo na universidade,
isso é insuficiente porque o marxismo não está socializado na
consciência massiva; fica como uma disciplina, que é bom que haja na
universidade, mas não passa daí. Não é que seja preciso falar de
marxismo, mas sim usar suas categorias, usar o tipo de análise marxista.
Uma das coisas que está presente nesses estudos é o debate sobre
imperialismo, que reapareceu no final dos anos 1990.
Como se dá a relação dos intelectuais não marxistas e a cultura revolucionária cubana?
O que é muito importante em Cuba é a defesa da identidade, porque Cuba
sempre esteve ameaçada e, às vezes, baseada em ameaças, às vezes nos
fatos, por essa invasão ideológica, cultural, dos EUA. Assim, há em Cuba
uma cultura da resistência, de resistir à invasão. Eu prefiro dizer
‘cultura da resistência e da luta’, pois me preocupa a ideia de ficar só
na resistência. No período após a queda do campo socialista, ‘resistir’
foi fundamental. Em Cuba, diante de suas condições históricas, a
independência, o socialismo e a revolução constituem um eixo
inseparável: se cai a revolução, os EUA vão tomar a ilha e anexar, de
uma maneira ou de outra, e o país como tal vai desaparecer. Por isso há
uma sensibilidade em quase toda a intelectualidade cubana, no sentido de
defesa da existência do país. Por outro lado, é muito bom que os demais
companheiros debatam suas ideias, mesmo não sendo marxistas.
Estudantes na Universidade de Havana -
Foto: Wagner T. Cassimiro Aranha/CC
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De volta às questões nacionais.
Em Cuba se discute as possibilidades da via chinesa e da experiência
vietnamita. Sentimos uma atração de comunistas cubanos pela experiência
do Vietnã. Por que os cubanos não desenvolveram uma discussão sobre o
marxismo e a questão nacional?
Eu vejo uma diferença, uma particularidade na história cubana, que foi
sempre de afirmação nacional muito forte; todo o processo de
independência de Cuba. Nós sempre lutamos contra os impérios: o
espanhol, o império estadunidense. Foram relações difíceis, e há uma
tradição do que chamo de ‘cubanidade’. Como é que Cuba consegue
resistir, principalmente após a queda do Leste Europeu? Então para
tentar entender isso eu fui pegar o fio da história e em Cuba se tem uma
tradição de afirmação nacional muito forte. Isso está presente no José
Martí. O sentimento nacional, de nação, é muito forte em Cuba, levamos
muito tempo para nos libertarmos da Espanha, tivemos que lutar quase
todo o século 19.
É um processo ímpar de independência.
Sim, não é como todo o resto da América Latina, que tiveram poucos anos
de guerra, nós lutamos dez anos e perdemos a guerra. A primeira guerra
de independência foi de 1868 a 1878, depois veio a revolução, a guerra
de independência organizada por Martí, que quando já estava muito
próxima de vencer os espanhóis, sofreu a intervenção dos EUA, que nos
roubou, nos tomou a vitória. Então, o país foi se forjando desta
maneira, e sem esse sentimento tão forte sem dúvida não estaríamos aqui.
Vamos falar, agora, sobre as mudanças em Cuba.
A necessidade de fazer mudanças é evidente. Essa necessidade de
modificação era pedida por absolutamente todos. Claro que nem todos
tinham em mente o que deveria ser mudado e como deveria ser feito, e
ainda hoje pode ser que isso se dê. A juventude, também, estava pedindo
essas mudanças como um eixo normal e natural da dinâmica desta própria
sociedade. Mas, além disso, no caso específico de Cuba, me parece
obviamente necessário o que chamamos de atualização do modelo cubano.
Como seria esse processo?
Reafirmo que as mudanças devem implicar em uma atualização do modelo.
Além disso, há a necessidade de retificação de linhas que se seguiram e
que estavam erradas, sendo necessário modificá-las. Por exemplo, a
liquidação de quase todo o artesanato, que contém uma cultura de
séculos.
E o processo revolucionário?
Um dos problemas que nós revolucionários temos ao longo da história é a
impaciência. Estamos cheios de um espírito de maior ou menor
impaciência. Isso nos faz atuar, nos impulsiona. Mas essa impaciência
faz com que se queira já uma ótima forma de justiça social, qualquer
forma de desigualdade incomoda muito. Marx, através da Crítica ao
Programa de Gotha, alerta contra isto. Não se liquida tudo da velha
sociedade de uma só vez. E nós, levados por essa impaciência de liquidar
o velho, quisemos queimar etapas e as consequências se pagam. Algumas
das coisas que no exterior se divulga é que estamos rumo ao retrocesso
ao capitalismo – e eles dizem retrocesso porque é o que eles querem –
mas não estamos em um processo de regresso ao capitalismo de nenhuma
maneira. O que não quer dizer, por exemplo, que toda uma série de formas
de trabalho que em Cuba chamamos de ‘conta própria’, que já existiam,
não possa existir.
Outra questão é o problema da produção pecuária e agrícola que aí se
ensaiaram várias fórmulas, mas que também não funcionou. Às vezes nos
culpam, e me parece que injustamente, porque tínhamos estas propriedades
extensivas, estatais, mas com trabalhadores agrícolas, e que deveriam
ter repartido em pedacinhos para dar aos camponeses, como no Vietnã e na
China. Mas em Cuba não se pode fazer o mesmo que os outros, porque
desde a época da colônia espanhola e depois com o imperialismo dos EUA
nunca houve um verdadeiro desenvolvimento do campesinato. Houve
campesinato, obviamente, mas o que predominava em Cuba eram as grandes
propriedades com modelos agrícolas. É preciso ver, também, que Cuba tem
essa herança. Agora estão distribuindo terras e me parece que é uma boa
saída, que incrementa a produção, mas levará anos para que vejamos os
resultados.
Como estão se dando as reformas?
Muitas dessas mudanças já haviam sido aprovadas e nunca foram
implementadas. Talvez por uma característica de nosso povo, de falta de
sistematicidade. Mas agora estão sendo encabeçadas por Raúl Castro e os
membros do Estado. Não se renuncia em nenhum momento ao planejamento
para se deixar chegar a uma sociedade de mercado – para não dizer
capitalista. Em nenhum momento foi proposto um socialismo de mercado,
mas sim um socialismo que reconheça que, nesta etapa pelo menos, não
podemos ignorar o mercado. Mas continua a propriedade social sobre os
meios de produção, nunca houve dúvidas sobre isto. Em nenhum momento se
propõe liquidar o socialismo, mas atualizá-lo.
Como o socialismo e as mudanças propostas são vistas pela juventude?
Temos um problema muito específico com as novas gerações. Eles não têm –
e isso não é uma questão só de Cuba – uma verdadeira compreensão, um
verdadeiro interesse no mundo. E esse interesse pelo mundo e essa
compreensão do mundo, em primeiro lugar, deve ser uma condição desse
homem do socialismo que não pode pensar só nele.
Diante de tudo isso, qual seria a perspectiva de Cuba?
Cuba seguirá socialista e internacionalista, sempre em defesa da humanidade.
Solidários
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